Na matéria publicada pelo jornal Folha de S.Paulo de 28 de março de 2007, aparecem dois títulos referindo-se à entrevista dada pela ministra à BBC Brasil. Na página A1 do jornal, lê-se: “Ministra diz que é ‘natural’ negro não gostar de branco”, e na página A9: “Ministra diz que o racismo de negro contra branco é natural”. Em primeiro lugar, as duas frases trazem duas versões da suposta fala da ministra que certamente não têm o mesmo conteúdo. Em segundo lugar, o termo natural colocado entre aspas na primeira frase e sem aspas na segunda poderia ser um complicador se for interpretado no sentido biológico da palavra, ou seja, no sentido de que a recusa do branco pelo negro ou o racismo do negro contra o branco é algo programado no aparelho genético do negro. Está claro que a ministra usou o termo natural como sinônimo de compreensível ou de explicável, apontando as causas históricas e sócio-políticas que podem explicar algumas atitudes preconceituosas por parte do negro, mas que ela mesma reprova.
Dizer que é compreensível o negro não gostar de branco, nada tem a ver com o racismo que significa outra coisa, pois não gostar é do domínio da subjetividade individual que remeteria ao preconceito. Ora, entre o preconceito racial, entendido como atitude, opinião, julgamento preconcebido, a discriminação racial, que é a negação da igualdade do tratamento – portanto um comportamento observável e mensurável sujeito a sanção – e o racismo enquanto discurso ideológico justificador e legitimador dos comportamentos, existem diferenças ou nuanças que não são percebidas na concepção comum. Creio que parte dos comentários que criticaram e condenaram a ministra ficaram também nos lugares comuns. Na cabeça de uma pessoa racista, os membros de um grupo diferente não apenas se diferenciam pelos traços somáticos, mas também, e sobretudo, são portadores de cultura, de aptidões intelectuais, morais, psicológicas, mentais e estéticas inferiores aos dos membros do seu grupo considerado superior. Estamos aqui no plano da coletividade e não da individualidade. Sem introduzir a hierarquização e a relação intrínseca entre o biológico e o mental, entre o biológico e o intelecto, entre o biológico e o cultural, entre o biológico e o moral, entre o biológico e o psicológico, etc., não há caracterização do racismo no seu verdadeiro sentido.
O negro coletivo, tanto no continente africano como nos países da diáspora, está ainda lutando para resgatar sua humanidade e sua identidade genérica e específica, negada e destruída durante os processos históricos que o escravizaram e o colonizaram. Esta tarefa enorme, ainda em processo que certamente levará tempo, é o fardo que carregam coletivamente as mulheres e os homens negros de todos os países.
Como explicar que o mundo negro, que ainda não conquistou sua dignidade humana e sua identidade coletivamente, possa ser racista, isto é, considerar-se superior ao branco em todos os sentidos? A recusa, a rejeição ou o preconceito do negro contra o branco, lá onde teria acontecido, deveria ser interpretado como uma reação histórica contra a rejeição do negro pelo branco, contra a opressão branca ou como preferem alguns como uma reação de legítima defesa, e não como um racismo às avessas, pois o racismo “negro” significaria que ele acredita coletivamente que é superior ao branco intelectual, moral, mental, estética e culturalmente. Atribuir o racismo ao negro coletivamente é um contra-senso diante da história e das relações de poder no Brasil e em outros países da diáspora.
Interpretar as palavras da ministra Matilde Ribeiro como racistas como o tentaram sugerir alguns comentários publicados no jornal Folha de S.Paulo de 28 de março seria no mínimo delírio ou má vontade deliberada. Não creio que uma pessoa como ela, que recebeu do presidente da República a responsabilidade de implementar as políticas públicas de promoção da igualdade racial possa dizer palavras que contradizem o sentido de sua própria luta como mulher negra e pessoa pública. Afinal, o que ela disse exatamente? Os comentários contra a fala dela parecem reproduzir os próprios preconceitos que pretendem combater. Dizer que a ministra ignora que a “raça” não existe é uma grande bobagem e gratuita, pois em nenhum momento na sua fala usou o termo raça, mas sim o termo racismo. Este último, embora derivado da raça para designar uma ideologia construída com base nas diferenças biológicas, não precisa mais hoje, século XXI, da vertente biológica, pois lança também mão das essencializações históricas e culturais para se reproduzir. A luta é contra a ideologia legitimadora e justificadora das desigualdades e não contra a raça, que não existe biologicamente, mas que é uma construção sócio-política. Parece-me que os críticos da ministra ignoram este conteúdo da raça enquanto construção e não realidade biológica. Soa para eles a grande “novidade” da biologia molecular que a ministra ignora. Bravo os críticos! De que adiantaria o uso politicamente correto de etnia no lugar de raça, se o nó do racismo, ou seja, a hierarquização das culturas e das sociedades não foi desatado?
Concluindo, a fala da ministra é apenas a ponta do iceberg, pois o que estaria na mira das críticas negativas não é a fala em si, mas sim a criação da própria Seppir pelo atual governo, que os que combatem as políticas de cotas consideram como uma racialização do país.
São Paulo, 10 de abril de 2007.
Kabengele Munanga
Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo