25 de Maio, dia de (falar sobre) África.

Durante o dia de hoje, perguntei a estudantes e profissionais de diferentes áreas com os quais tive contato: 25 de maio é uma data comemorativa? Todos disseram não saber, confirmando que entre os brasileiros prevalece o desconhecimento sobre um Dia da África que sequer está assinalado em calendários.

Diante desta lacuna, a Ciranda Afro propõe uma roda de conversa digital sobre o 25 de maio, reunindo vozes do Brasil, Moçambique e Cabo Verde para pensar o significado desta data para africanos e brasileiros.

Abrimos nossa roda compartilhando o informe da ONU, órgão que instituiu o dia da África em 1972. Na véspera de mais um 25 de maio, o secretário geral da ONU, Ban Ki-moon reitera o alarme da instituição “contra a pobreza, a fome e as disparidades em matéria de saúde, educação e participação social que impedem a plena realização do potencial existente no continente africano. Disponibilizado em http://www.prensalatina.cu/index.phpoption=com_content&task=view&id=509874&Itemid=1, o texto “elogia os recentes esforços dessa região para consolidar a paz e a segurança e ‘recusar as mudanças inconstitucionais de poder’, em clara alusão aos recentes golpes de Estado em Mali e Guiné – Bissau.

O secretário geral destaca que a ONU continuará seu trabalho com os países africanos para construir uma paz duradoura, finalizar os conflitos armados, fortalecer a democracia e promover o respeito dos direitos humanos fundamentais, em especial das mulheres e da juventude”. Portanto, a data serve para que o órgão internacional reafirme a necessidade de um esforço externo para a promoção da paz e desenvolvimento do continente.

Após o pronunciamento institucional, ouvimos a sociedade civil representada pelo moçambicano Leo Nhantas, pela cabo-verdiana Augusta Évora, pelo afro-brasileiro Israel de Oliveira e por Cláudia Calmon, outra colaboradora afro-brasileira.

O discurso de Eleutério Lúcio Rogério Nhantumbo, estudante moçambicano que reside no Brasil até a defesa de sua dissertação, nos confronta com um olhar africano sobre a criação e significado do dia da África em Moçambique. Cursando Mestrado em Ciências Sociais na UERJ, Leo Nnhantas – como é chamado pelos estudantes brasileiros, aborda o contexto africano e as referências históricas existentes à época da instituição da data pelos africanos. A observação do sociólogo pontua aspectos que ajudam a compreender a falta de pertença que paira sobre a data tornada mundial por um órgão externo:
“Em minha opinião, esta data é apenas simbólica para os moçambicanos. Não é, por exemplo, um feriado nacional onde se faz uma reflexão sobre ela. Na concepção dos Moçambicanos, a ideia do dia de África foi consolidada no dia 25 de Maio de 1963, quando se criou a Organização da Unidade Africana (OUA) na Etiópia, por iniciativa de 32 países africanos independentes.

Portanto, esta data é considerada por nós como dia de África, porque com a união dos povos africanos (OUA), pretendia-se na altura erradicar todas as formas de colonialismo em África, e a posterior criar uma organização económica continental que não fosse totalmente dependente do ocidente.

Um dos mentores desta unidade foi o primeiro presidente do Ghana independente, Kwame Nkruma (1958) e finalmente posto em pratica pelo Imperador Etíope Haile Selassie (1963).

A criação da OUA incomodou certos países do ocidente, e alguns africanos particularmente os países francófonos, por causa da diversidade cultural dos povos africanos, pois alguns povos achavam que os africanos não estavam preparados para ter uma liderança capaz de satisfazer as ansiedades (por exemplo, as ansiedades socioeconômicas) de todos os povos.

Atualmente a OUA não existe, foi substituída pela União Africana (UA) em 2002, e teve como mentores, entre outros, Thabo Mbeki (África do Sul – 1º presidente da UA) e Alberto Chissano (Moçambique – 2º presidente da UA) e Muammar kaddafii (Líbia). A gênese da UA não se difere na totalidade com o da OUA, atualmente focaliza os seus objetivos como maior enfoque na unidade e a solidariedade africana; na conquista da soberania dos Estados africanos; a integração económica; e cooperação política e cultural no continente.

Assim esta data, para alguns povos serviu e para outros não serviu de referência na vida dos africanos, porque não foi consolidada como única e importante para todos, apesar de todos os africanos lutarem pelas ideais pelos quais a OUA foi criada. Desde então, em Moçambique ela é apenas simbólica, particularmente para os mais velhos que tem noção do dia, mas a atual geração quase toda ela a desconhece, isto é, não se faz muita reflexão sobre o que significado de uma Unidade Africana. Acredito que com tempo, e com os objetivos da UA mais consolidados, os africanos tornem este dia como símbolo de todos nós.

De Cabo Verde, a professora e redatora parlamentar Maria Augusta Évora compartilha informe sobre a programação do Dia 25 de Maio: “hoje haverá uma jornada de reflexão no Palácio da Cultura sobre o dia de África, outra no CILP, dois textos no Jornal A Semana sobre o Tema e a notícia de que o Aeroporto da Praia vai ser baptizado com o nome de Nelson Mandela (esta última foi decisão tomada oficialmente antes), entre outras pequenas actividades que vão acontecendo. Parece também que o Presidente da República vai se encontrar com os africanos residentes em Cabo Verde (leia-se não verdianos). Iniciativas ainda mais comemorativas, algumas reflexivas do que reinvindicativas”. Ampliando sua colaboração, Maria Augusta nos fala sobre o sentido do dia da África no contexto insular deste país africano geograficamente separado do continente:
“Chamo-me Augusta, sou negra, africana de Cabo Verde. Nasci em Calheta de São Miguel, num sítio chamado de Veneza (portanto na ilha de Santiago, primeira ilha a ser descoberta e o berço da crioulidade. A ilha maior, mas também onde se vendiam e se compravam escravos, por onde passavam a caminho do Brasil, das Américas e das Áfricas.

Santiago é a ilha mais africana de Cabo Verde (alguns dizem que é a única ilha africana de Cabo Verde). Como assim, se Cabo Verde é um país africano? Ou não será?

A problemática da identidade parece tornar-se pertinente às nações que conquistam uma independência política depois de séculos de colonização. Em Cabo Verde, esta questão que foi colocada em várias etapas da nossa história permanece atual e merece uma reflexão, especialmente nesta fase de desenvolvimento do turismo que vivenciamos.

Quis justificar a minha apresentação inicial: está aí uma frase que poucos cabo-verdianos colocariam em sua apresentação pública. Chamo-me Augusta, sou negra, africana de Cabo Verde. E quando a vêem reagem. Não é algo consensual. Sabemos que somos africanos mas: ou devido à posição geográfica ou devido à “lavagem cerebral” feita no tempo da colonização (em discurso e em ato, uma vez que aos cabo-verdianos se atribuiu, em certos momentos, estatuto diferente do dos outros africanos… ou por ambas as razões), o certo é que persiste ainda em Cabo Verde alguma afrofobia.

Raramente um cabo-verdiano se propõe a pensar Cabo Verde, em suas africanidades, como algo que lhe é intrínseco. Primeiro pensa Cabo Verde e se o assunto é África ele vê, daqui das ilhas, a Mãe África algures (perto, longe, dependendo de mil coisas, às vezes até de ser de Santiago ou não); depois é que pensa que ele TAMBÉM é africano. Não é à-toa que Cabral e outros combatentes tiveram de construir o projeto de “reafricanização dos espíritos”.

Cabo Verde é um país onde a palavra construção não é apenas uma metáfora, o que nos leva a deduzir que está tudo por se fazer; por outro lado, a sua especificidade de arquipélago insular, no cruzamento de rotas atlânticas e de civilizações, trouxe-lhe uma experiência de globalização precoce, em que as permutas culturais são uma constante e a riqueza da diversidade é assumida como um modo de ser “crioulo”. O fato de ser um país que se formou de uma realidade de duas ascendências populacionais em situação de “diáspora”, e que continua convivendo com culturas de outras latitudes, leva-nos a considerar pertinente e sempre atual um estudo sobre a identidade cultural desse povo ilhéu.

Por isso, ainda estamos a amadurecer o nosso Dia de África. Os principais projetos são de caráter escolar. Cheguei a ver escolas que apresentaram no Dia de África culturas de outros países irmãos (sem a CV), mas a maioria está a investir na “reafricanização dos espíritos”. Escrevem-se artigos sobre o assunto nos principais jornais, mas não há, ainda, uma sistematicidade coerente à volta do dia.

Não é algo assumido ou que desperte rios de tinta dos intelectuais. Boa parte da sociedade civil se lembra do Dia, à noite, na comunicação social. E o interessante é que os jornalistas, no dia de África, produzem matérias muito interessantes, de fato, sobre África, mas, nelas, incluem entrevistas, testemunhos, etc de outros africanos (os do continente). Os cabo-verdianos não são ouvidos e nem sentem falta disto (a maioria, falo sempre do homem comum, daquele cuja cachupa não depende da cultura, de assuntos relacionados com o tema).

Mas, por outro lado, assumimos uma cultura tão prenhe de africanidades, com uma naturalidade tão forte que nem sequer identificamos a matriz principal da nossa crioulidade. Nós nos orgulhamos muito da nossa cultura africanamente pujante, mas a ela chamamos cultura crioula ou cultura cabo-verdiana.

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A ideia de construção também transparece na leitura do professor e documentarista Israel de Oliveira. Docente que atua na formação de professores em instituição situada no Estado do Rio de Janeiro, Israel tece suas considerações forjadas no contínuo estudo das relações étnico-raciais e exercício de aplicação da Lei 10.639. Inspirado no conceito de Arkhé (raízes), o professor reflete sobre o significado do dia da África no plano simbólico da afirmação de identidade afro-brasileira em nosso espaço diaspórico:

“Dia 25 comemoramos o dia da África. Por que comemorar-se o dia da África? Quem levanta essa questão da mesma forma deveria se questionar pelos motivos que leva um mozambo na sua empreitada perene em sua tentativa frustrada de aceitação, a priorizar a etnia monorracial dominante que lhe rechaça? Sendo eles parte do segundo país com maior número de negros no mundo…!?? Esse mozambo gerado no não-lugar e gestado no entre-lugar, vivendo sobre o jugo da não-identidade, tendo sido negada sua inserção na sociedade? Tendo por esse motivo, optado compulsoriamente pela branquitude, como única possibilidade de aceitação, renegando a negritude como auto-defesa?

Apesar de essa opção ter se redundado em rotundo fracasso, traduzido pela miséria e desemprego, decorrente da assunção desses valores alienígenas, ele continua a insistir involuntariamente em ser uma peça, um objeto, um escravo de ganho. Vivendo nessa conjuntura, destituído de sua identidade e de si mesmo, ele abraça as referências eurocêntricas, assumindo valores, posturas e atitudes que implicam em infindáveis conflitos físicos e psicológicos. Tendo sua identidade embotada ou reclusa por esse processo, os conflitos se grudam nesse indivíduo, de forma simbiótica.

O difícil e complexo resgate dessa identidade deve centrar-se num processo hermenêutico e diatópico, a fim de provocar os paradigmas postos, além da necessidade da instrumentalização e do trabalho epistemológico. Ou seja, não basta saber que existem outros pontos de vistas, não basta a insatisfação com o que está posto, não basta o simples querer; Só assim seria possível uma correção construtural.
Sem esse processo, desse novo olhar, desse novo lugar, esse caminho torna-se espinhoso; o indivíduo permanece mozambo. Nossas crianças continuaram a serem adestradas a ter medo de suas raízes, continuarão a escarnecer e desprezar sua descendência melanodémica. Ele esqueceu-se da existência da verdade e de sua verdade, admitindo unicamente a verdade do outro.

Como forma de autodefesa, ele ri de seu infortúnio, fugindo do embate, escondendo-se atrás do próprio conflito; se desconhecendo vítima, enquanto assume a cadeira de réu. Desse modo, ele mesmo se pune quando naturaliza sua condição de réu, na assunção da representação construída para si.

O indivíduo tenta sem sucesso, medir-se pela euro-imagem, tentando alcançar a igualdade através dessa pseudosemelhança, esquecendo-se de si. Acreditando poder encaixar-se nesse papel ditado pela constituição, ele assume a branquitude vivendo a utopia da promessa de liberdade. Assim ele se torna uma pessoa que é muito e que tem pouco, trocando o tempo pelo relógio, mesmo sabendo que por mais gordo que um gato seja, ele nunca se tornará um leão. Portanto, o dia da África é o dia de revisitar nossas origens, para que possamos ser capazes de reescrever nossa própria história de vida.

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Coube a historiadora e professora Cláudia Calmon o quarto ponto de vista, com o qual fechamos a prosa. Sua fala aborda duas questões que ajudam a avaliar como o 25 de Maio se insere na história e calendário da educação pública carioca. Professora da rede municipal do Rio de Janeiro e uma das coordenadoras do projeto “Discutindo África na Sala de Aula” da UERJ, Cláudia Calmon sintetiza em dois tópicos suas impressões sobre a mobilização das escolas públicas em torno desta data e sua avaliação do significado da data nos níveis da educação pública carioca em que atua. Sobre a mobilização na rede pública municipal, ela observa que:
“Não há uma posição oficial da SME/RJ sobre a comemoração do “Dia da África”. A escola onde leciono não recebeu qualquer comunicado neste sentido, por isso acho que a questão é tratada como os demais dias eleitos para celebrar o “índio” ou o livro, ou seja, ações isoladas de professores e/ou escolas.

Como fecho para a nossa roda de conversa digital, a historiadora apresenta uma resposta concisa e esclarecedora para a questão proposta pela Ciranda Afro: a data instituída pela ONU tem sido significativa para a educação das relações étnico-raciais?

“Não. Embora compreenda o simbolismo e a importância da data, no campo da educação o estabelecimento de um dia para comemorar algo, muitas vezes resulta na caricaturização do homenageado, contribuindo para a consolidação de estereótipos. No caso específico do continente africano, a sua história e de seu povo foi durante muitos anos tratada como algo homogêneo e vinculada à pobreza, doenças, escravidão ou a manifestações culturais exclusivamente ligadas à música e à dança. Por isso, acho que precisamos de vários dias para falar sobre a África – acredito que o espaço da sala de aula seja o lugar privilegiado para que isso ocorra – com a introdução efetiva no currículo das escolas e das universidades de temas que tratem a região em sua diversidade étnica, cultural e política.”

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