Exceto afirmações que o ativismo verde deixou de ser coisa de amadores e sonhadores para se transformar em habilidade de profissionais; que foram criadas regras e ampliou-se o arsenal legislativo convergindo para a imposição de pré-requisitos com fins de proteger o meio ambiente e os interesses das populações tradicionais; que ganhou relevância o papel do Ministério Público, dos órgãos ambientais e do Judiciário; que a sociedade ficou mais vigilante e as organizações não-governamentais também se fortaleceram; pouco se aproveita.
É curioso o resto do raciocínio contido no Editorial de “O Liberal” deste Domingo, 11/04/10, sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte, sob o título “Belo Monte e o xiitismo”. O texto é característico de quem vê “forças demoníacas” contra a obra e até parece que foi escrito por um conhecido “formador de opinião” tupiniquim aqui do Pará, o qual como antiambientalista deve ser um péssimo economista.
O autor afirma que “criou-se a figura do ‘xiita ambiental’, muito mais peculiar que o ‘ecochato’: segundo ele, este seria apenas um chato que não produziria maiores conseqüências do que sua chatice; aquele, não: seus impulsos, não raro, seriam capazes de levá-lo a pendurar-se no galho mais elevado de uma árvore, para evitar que a última minhoca do planeta fosse exterminada sem dó nem piedade”.
Seguindo o raciocínio editorial, é como se no caso de Belo Monte estivéssemos falando de simples minhocas e não de milhares de seres humanos, de populações tradicionais inteiras, sobre profundas modificações no habitat natural e no modo de vida desse povo à custa do sacrifício dos recursos naturais e da biodiversidade em benefício prioritário e quase exclusivo de grupos empresariais privados.
A analogia do autor com o islamismo é equivocada e preconceituosa, na medida em que estabelece comparação dos atingidos com os grupos xiitas, já que durante séculos, o movimento xiita teve influência decisiva sobre o Islã, apesar da sua posição minoritária, mas xiitas mesmo devem ser os defensores do projeto da forma que estão querendo “empurrar goela abaixo” o processo de licenciamento ambiental. Dentre suas características particulares está a dissimulação da fé em público de forma a “evitar problemas sociais”, que é permitida, desde que mantida “em privado”. Já os sunitas, por seu turno, corresponderiam aos grupos contrários, cada vez mais numerosos, que começam a não mais aceitar de boa vontade a liderança de qualquer “califa” ou “dinastia de califas”.
O editorial diz ainda que “absolutamente nada está sendo feito à margem da lei, em todo o curso deste processo que antecede a construção da hidrelétrica”, e chega até a reclamar que o controle social “tem sido mais rigoroso sobre Belo Monte, em relação a tantos outros empreendimentos do gênero”. Bem lembrado! Provavelmente, estejam se referindo a determinados projetos da Vale. Quanto ao “nada à margem da lei”… Seria melhor que rasgassem logo a Constituição Federal e liberassem todo cidadão a praticar todo e qualquer ilícito, afinal, não vivemos em um país democrático?
Se considerarmos coerentes as idéias do editorial, significa assumir que estamos falando do “Belo Desmonte” da legislação ambiental, frente ao desconforto dos próprios técnicos do IBAMA que analisaram o processo, e dos inúmeros atos de protesto das populações tradicionais, da sociedade civil organizada, da Igreja e do Ministério Público Federal, segundo o editorial, todos xiitas.
O MPF descobriu, analisando o material do IBAMA, que os próprios técnicos do governo deixaram claro, em vários documentos, seu desconforto com a falta de dados científicos que garantissem a segurança ambiental do projeto, conforme dito anteriormente. A pressa em conceder a licença atropela não só ritos legais e princípios democráticos, mas atenta contra o postulado da precaução, essencial para evitar desastres ambientais.
O editorial afirma que “debates são necessários, mas no caso específico de Belo Monte, já teria passado o tempo dos debates, das discussões, do confronto de posições. Esse momento teria ocorrido durante as audiências públicas realizadas no Estado”. Sobre esse aspecto, recomendo a leitura de “Jogos de poder na questão ambiental. ”, para verificar que os grandes perigos de uma reunião participativa são justamente os mecanismos autoritários, típicos de uma cultura política antidemocrática, reproduzidos em maior ou menor escala pelos participantes, por hábito ou intencionalmente; e que é importante saber identificar esses mecanismos e agir para que os participantes os compreendam e para que o grupo possa substituí-los por alternativas democráticas, contrárias da indiferença, da cena oculta, da disputa retórica, da desfocalização, da generalização de discurso, da teoria da conspiração ou síndrome da perseguição.
Por falar em autoritarismo, a hidrelétrica de Belo Monte será construída no Rio Xingu (PA) com ou sem a participação de empresas privadas, garantiu semana passada o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Uma coisa vocês podem estar certos: nós vamos fazer Belo Monte. Isso é importante que fique claro em alto e bom som. Entrem empresas na disputa ou não entrem”, afirmou Lula a jornalistas após evento no Itamaraty, ressaltando que quem acredita que o governo não tem “cacife” para isso está enganado.
Vou acatar a sugestão do Blog do Jubal e ler os Subterrâneos da Liberdade, a trilogia de Jorge Amado sobre a vida política brasileira no Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas.
Para compensar o anúncio da desistência da Odebrecht e da Camargo Corrêa e salvar o leilão da hidrelétrica de Belo Monte o governo decidiu convocar os grandes fundos de pensão de estatais – como Previ, Funcef e Petros – para negociar a formação de novos consórcios. Segundo o Estadão, citado pelo Blog O Filtro, as empreiteiras que desistiram entraram na disputa para pressionar pela alta de preços. A conseqüência foi um aumento de 20%, e mesmo assim as empreiteiras saíram da disputa, o que gera a desconfiança de que a desistência tenha sido uma “trapaça”. De acordo com técnicos do próprio governo o objetivo seria a garantia de que apenas um consórcio se apresentasse no leilão. A suspeita é de que as construtoras pudessem ser “recompensadas” pelo único interessado, por terem evitado a concorrência.
O editorial antiambientalista também afirma que “todos os movimentos, todas as propostas, todas as mobilizações que se destinem a acompanhar a construção da hidrelétrica seriam bem-vindas, mas não poderiam antepor-se como obstáculos intransponíveis para a consecução de objetivos estratégicos”. Resta perguntar: objetivos estratégicos de quem?
O leilão de Belo Monte corre o risco de ter um único grande interessado: o consórcio encabeçado pela Andrade Gutierrez, que se uniu à Vale, ao grupo Votorantim e à Neoenergia, que tem o Banco do Brasil e a Previ como acionistas. A Vale deve estar achando tudo isso “muito ruim” para não dizer o contrário.
Finalmente, a justificativa ética da obra fica cada vez mais complicada, já que, para tanto, o sistema de valores assumido considera lícito sacrificar um bem público, o meio ambiente, em nome de um bem privado, o lucro de algumas megacorporações multinacionais. Isso é factível se assumirmos que o correto é que quem pode mais, ou quem possui mais poder, ou está muito próximo do poder, use todos os meios que considere cabíveis, possíveis, impossíveis, imagináveis e inimagináveis para perseguir seus interesses, doa a quem doer! E, para fechar o raciocínio do prezado leitor, recomendo visita ao seguinte link no Ciranda: “Cratocentrismo verde, Crematocentrismo amarelo, ou Cratocrematocentrismo cada vez mais verde e amarelo?”