Aspirações perigosas

Novo tema ganhou destaque na imprensa nos últimos dias. Trata-se de
concordata (acordo ou tratado firmado entre um papa e um governante a
respeito de assuntos religiosos) que estaria sendo urdida entre o Vaticano e
o governo brasileiro. O objetivo seria conceder vantagens religiosas e
educacionais à igreja católica.

O assunto veio a público em artigo de Roseli Fischmann publicado na
imprensa, no qual a autora revela que, segundo um advogado representante da
CNBB “estariam quase totalmente prontos, com poucos pontos a ajustar, os
termos de concordata entre o Estado do Vaticano e o Brasil”.

Disse ainda o
advogado que seria concordata “muito completa, com repercussões legais,
políticas, administrativas, tributárias e financeiras” e que a decisão do
papa de vir ao Brasil em maio próximo estaria ligada a isso. Outras
manifestações da igreja na mídia indicam que a visita se liga ao decréscimo
do número de católicos na América Latina e no Brasil.

Para as brasileiras,
em especial, a possibilidade de assinatura de tal concordata se reveste de
fonte de inesgotáveis preocupações. O Vaticano tem sido inimigo declarado
dos direitos das mulheres. De forma obscurantista, tem defendido em fóruns
nacionais e internacionais posições dogmáticas que resultam, se aceitas e
aplicadas, na exposição a sérios riscos de saúde.

A igreja se opõe ao uso de preservativos para a proteção contra o contágio
de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e Aids. Recomenda cândida e
idilicamente a castidade para os solteiros e a fidelidade para os cônjuges.
Manifesta-se igualmente contra o aborto legal, inclusive nos casos
permitidos por lei (como, no Brasil, quando há risco de morte para a
gestante ou quando o feto não tem condições de sobrevivência, como os
portadores de anencefalia) . É assim também em relação à gravidez decorrente
de estupro.

São posições dogmáticas que desprezam o sério problema de saúde
pública. É o caso do aborto ilegal, que implica morte ou graves seqüelas
para milhares de mulheres anualmente; que nega o direito de se desfazer de
gravidez resultante de estupro ou de evitar o sofrimento de persistir com
uma gestação em que o feto não tem viabilidade para a vida.

O papa Bento XVI
é autor do memorando “Sobre a cooperação dos homens e das mulheres na igreja
e no mundo”. Trata-se de documento elaborado quando o pontífice era cardeal.
Nele, o papa condena o feminismo, que em seu entendimento conduziria à luta
entre os sexos, e repudia a defesa do homossexualismo, que, segundo ele,
cria “equivalência entre a homossexualidade e a heterossexualidade” .

Entre os temas que a hipótese de concordata repõe como previsível
conseqüência do acordo, está o ensino religioso nas escolas. Ao contrário
dos que acreditam que o fato “tem a potencialidade de discutir a tolerância
e o pluralismo”, a visão do papa não parece tolerante com a luta de
emancipação das mulheres nem com o direito à livre orientação sexual. É a
concepção que ele ordena para os fiéis. Não é isso que queremos que as
crianças aprendam nas escolas. Nem outras modalidades assemelhadas de dogmas
e preconceitos.

Se a liberdade religiosa é uma das conquistas da cidadania e
se as mulheres e homossexuais são também sujeitos de direitos arduamente
conquistados, a quem cabe o dever de arbitrar quando dois direitos entram em
colisão, ou seja, quando o exercício de um implica a negação de outro?

Esse
é o papel do Estado, ao qual compete assegurar o exercício democrático de
ambos. Aí reside a importância de assegurar a laicidade do Estado, sem
ambigüidades, para o que muito contribuiria fosse acatada a sugestão de Aldo
Pereira, também em artigo na imprensa, de que o Congresso Nacional aprove
emenda constitucional que suprima o parágrafo 1º do art. 210. O texto prevê
que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”.

A supressão reafirmaria o dispositivo secularista expresso no art. 19, inciso
I, que “proíbe ao Estado estabelecer (oficializar) ou subvencionar cultos
religiosos ou igrejas (congregações) ‘ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança’ (…)”. As igrejas,
candomblés, templos, sinagogas, mesquitas são espaços com o fim específico e
legítimo de preservação e reprodução de valores religiosos das diferentes
denominações. Então, por que a escola, cuja missão essencial é ofertar
ensino laico e científico, deveria destinar tempo e recursos para o
proselitismo religioso?

Sueli Carneiro,

Fonte: Afropress 20/12/2006.

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