No primeiro dia (23) do encontro Entremundos – Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, realizado em Registro, no Vale do Ribeira, Rita Laura Segato, antropóloga da Universidade de Brasília (UnB) permeou a questão da diferença de comunidade com a sociedade de massa moderna. Segundo ela, a colocação de nós e outros é produto disso e isso resulta na seguinte pergunta: como fugir dessa armadilha? “Não é simples dar um estatuto de cada povo. Existe um pluralismo, com um caos e anarquia, no bom sentido da palavra. Cada um é diferentemente diferente, mas todos iguais em sua forma de relação com o Estado”, fala.
O Estado, por sua vez, formula políticas públicas, e por outro lado, é um formatador das comunidades nesta relação, de acordo com a acadêmica. Ela considera esse aspecto negativo.
“Uma comunidade, na definição estatal, é a forma de operacionalizar a relação, mas aí contém alguns perigos, porque fecha essa definição. Já a comunidade opera com relação coletivista e tem de restringir o individualismo, com metas diferentes das adotadas no mercado. Mas também opera com racionalidade”, diz.
No mundo moderno, a antropóloga afirma que o discurso é igualitário, entretanto, há prática individualista, com o cálculo do custo-benefício do mercado. “A esfera pública sequestra a política e tira o caráter doméstico, como o resto”.
Em sua análise, avalia que na suposta gestão para a cidadania, existe também um sujeito da República com aspecto masculino, sobretudo branco, letrado, proprietário e pai de família. “Ele não tem nada de democrático. Quando colocamos esse dilema com discurso hierárquico, há o contraponto de que a imaginação não é”, fala.
“…Quando entra o salário nas aldeias indígenas, por exemplo, isso gera hierarquias ou são ampliadas. Apesar das boas intenções das políticas públicas, essa situação acaba rasgando o tecido comunitário, que é o mais importante de todos”, considera.
Segundo a antropóloga, a linguagem do Estado tem sua origem histórica. É herdeiro da colonização portuguesa, criado para administrar em benefício das elites, com repartições e carimbos para destinar os recursos da nação.
“Estamos vivendo a tentativa que repasse ao papel redistributivo. Esse pensar coletivista envolve fortalecer as comunidades em algum grau de economia, que passa a se configurar como um povo, que é algo complexo. Tem de haver uma densidade simbólica, chamada de cultura e de tradição”, afirma.
Essas definições enlatam a comunidade, na sua avaliação. “A cultura tem o lado bom do compartilhamento de crenças, religião, como também, retira a comunidade da História. Todo povo se encontra na História e o que o faz ser um povo é compartilhá-la, mesmo havendo os conflitos de interesse internos”.
Indo mais além nessa reflexão, ela diz que um povo é aquele que se sente construindo uma história comum, um sujeito coletivo vivo que se sente parte, mas não está restrito a uma cultura fixa. Por isso, é preciso devolver ao povo o sentido juridicional, quando esta justiça própria é devolvida.
Portanto, se uma nação é definida como confederação de povos, deliberar constantemente, avaliar e julgar seus conflitos, (aparentemente) devolve a rédea de sua própria história. “Quando o Estado devolve esse empoderamento, obriga a todos os membros da coletividade a produzir uma fachada de identidade para haver a relação”, explica Rita.
Como exemplo, cita o caminhar das comunidades do candomblé. “O povo do terreiro…como estratégia de sobrevivência, incluiu o branco, em um ambiente que era hostil e conseguiu algo milagroso, de se expandir. Agora, o Estado muda de signo e propõe a política de identidade racial. Ela quer dizer que há o engessamento nos mesmos padrões e formas”, diz.
Confira a íntegra do evento em Ocareté-Entremundos – www.ocarete.org.br/entremundos