por Grupo São Paulo
A tragédia que colocou o Haiti no triste patamar de um dos países mais pobres, explorados e desiguais de todo o planeta não começou com esse último terremoto que destroçou por completo o país. O verdadeiro tremor que assolou o Haiti não foi apenas natural, mas também financeiro, político, histórico e cultural. Se hoje ele é considerado um dos países mais isolados do mundo, ele já foi um exemplo para o mundo na luta contra a escravidão e pelo seu próprio processo de independência contra a colonização francesa e a exploração de outros países como a Espanha e os Estados Unidos.
E foi essa história de luta que levou os chamados países desenvolvidos a isolarem e espoliarem o Haiti, para que ele não fosse um exemplo de como combater os exploradores. Bem antes do terremoto, algo em torno de 80% da população já amargava o triste posto de viver bem abaixo do que se costuma chamar de “linha de pobreza”, contando ainda com aproximadamente 70% de desempregados. Enquanto isso, o Estado haitiniano já estava com seu cofre zerado, tendo que suprir ainda uma dívida externa que já beirava 1 bilhão de dólares.
Parte da rica História do Haiti começou quando o escravo negro Toussaint L’Ouverture, figura histórica praticamente desconhecida entre os brasileiros, liderou uma rebelião que acabou libertando os haitinianos da escravidão no ano de 1791. Depois de conquistar o fim da escravidão, o Haiti ainda tornou-se independente em 1804, sofrendo a partir daí um forte boicote financeiro por parte dos EUA.
O temor era de que o Haiti se tornasse um exemplo de luta para outros países colonizados. Afinal, trata-se de uma república fundada por escravos libertos. Esse pioneirismo histórico, no entanto, custou caro. Assustou os colonizadores, que passaram a temer a exportação da notícia para outros países colonizados. Conhecido como “Pérola das Antilhas”, o Haiti passou a ser um perigo para a elite branca de países como o EUA e a Jamaica, incluindo o próprio Brasil. Segundo o historiador britânico John Linch, da Universidade de Londres, “o Haiti foi estigmatizado como inimigo de todos os regimes coloniais e escravistas das Américas”.
A França, para aceitar o fato de perder o Haiti como sua colônia, cobrou uma indenização de 150 milhões de francos, chegando até a enviar uma enorme esquadra com o objetivo de combater o Haiti livre. Tal quantia representava, na época, 80% do orçamento daquele país, podendo-se dizer até que ele nasceu “falido”. Em um falso discurso democratizante, o Haiti passou a ser, a partir daí, gerenciado e espoliado pela política estadunidense até pelo menos 1934.
Estimava-se, naquele período, que aproximadamente 75% de sua população vivia no campo. Eram produtores de cereais para consumo próprio e exportação. Uma reforma liberal comandanda pelo Banco Mundial abriu as portas do país para a entrada de cereais americanos, a preço subsidiado, o que desmontou por completo a economia interna do país, levando seus produtores à falência total e ao estado de miserabilidade.
Na seqüência, vários ditadores passaram pelo Haiti. O mais cérebre deles foi François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc. Ao ser eleito em 1957, chegou a perseguir a Igreja Católica e a se declarar presidente vitalício. Após sua morte, em 1971, foi ainda substituído pelo seu filho Jean-Claude, o “Baby Doc”.
Apesar das diversas tentativas de salvar o país da “falência” total, o padre ligado à Teologia da Libertação Jean-Bertrand Aristide, eleito democraticamente em 1990, não conseguiu livrar o Haiti do triste posto de ser o mais pobre do continente. Aristides investiu nas áreas de alfabetização, saúde pública e reforma agrária, além de aumentar o salário-mínimo e criar programas de geração de emprego. Todas essas ações incomodoram a elite local, o que gerou um golpe de Estado menos de um ano após a sua posse.
Aristide ainda retorna à presidência do país, mas, devido a sucessivos boicotes sobretudo dos EUA, o Haiti até hoje não conseguiu superar a limpeza que os chamados países desenvolvidos fizeram em seus cofres públicos, pelo simples fato de eles não terem perdoado o pioneirismo do povo haitiniano em sua árdua luta pelo fim da exploração e da escravidão. O grande desafio agora, diante do que restou do país após o terremoto, será o de se reerguer, voltando a conquistar a liberdade e a autonomia frente a uma elite, não só internacional, mas também interna, que nunca aceitou a histórica luta, tanto pela igualdade social como pelo respeito às diferenças, desse guerreiro povo.
Guga Dorea, Thomaz Ferreira Jensen e Andrea Paes Alberico, do Grupo de São Paulo – um grupo de pessoas que se revezam na redação e revisão coletiva dos artigos de análise de Contexto Internacional do Boletim Rede, editado pelo Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, de Petrópolis, RJ.
contato: gruposp@correiocidadania.com.br
Artigo publicado na edição de fevereiro de 2010 do Boletim Rede.