A polêmica em torno do Inclusp

Foto: Revista Mundo e Missão

O Programa de Inclusão Social da USP – Inclusp, foi criado em maio de 2006 e após cerca de um ano está passando por avaliações por parte da Pró-Reitoria de Graduação da USP e da Educafro – Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes, entidade da sociedade civil que tem como missão promover a inclusão da população negra e pobre em universidades públicas e privadas.

A avaliação do sistema está polarizada: de um lado, a pró-reitoria o avalia como um sucesso e, de outro, a Educafro o avalia como um fracasso.

A proposta de efeito mais imediato do programa, que possui ações antes do ingresso, no ingresso e após o ingresso, é a atribuição de um bônus de 3% nas notas de 1a e 2a fase do vestibular da Fuvest para os alunos que cursaram todo o ensino médio em escola pública. O bônus acarretou um aumento da aprovação dos alunos de escola pública de cerca de 2%, que passou de 24, 6% em 2006, para 26,7% em 2007. Desses 26,7 % de ingressantes de escolas públicas, 89% ingressariam sem o Inclusp, e 11% ingressaram por conta desse bônus.

Para Selma Garrido, pró-reitora de graduação da USP, essa foi a etapa mais impactante do Inclusp. “Nós tivemos uma ampliação significativa dos alunos que vieram das escolas públicas, confirmando, portanto, essa hipótese inicial que a gente tem bons estudantes. No subtexto do programa a nossa hipótese era também de que ao trazer mais alunos de escola pública nós estaríamos trazendo alunos de menor faixa de renda familiar e alunos negros, e isso se confirmou. Nas escolas públicas estão esses segmentos. Então este é o sucesso em relação à hipótese inicial.”

Já para a Educafro tal hipótese não se confirma. A entidade acredita na necessidade do recorte étnico-racial e de critérios socioeconômicos nas políticas de inclusão. Tendo como base pesquisas nos dados do perfil do ingressante da USP entregues pela própria pró-reitora em reunião com a entidade no dia 19 de setembro, destacam que enquanto o número de ingressantes de escola pública subiu 2%, o de alunos negros subiu somente 0,9%.

Douglas Belchior, da coordenação nacional da Educafro, alerta para o fato de que apenas 49% dos alunos negros ingressantes na USP é proveniente de escola pública, e que mesmo com o Inclusp houve uma elitização dos ingressantes de 2007, já que a porcentagem de participação dos alunos com renda de 500 a 1.500 reais caiu de 22,3% em 2006 para 19,4% em 2007, e o daqueles com renda acima de 1.500 reais subiu de 77,7% para 80,6%. Esses dados sobre renda são analisados a partir dos formulários de autodeclaração da ficha de inscrição.

O tratamento dos dados específicos sobre o perfil sócio-econômico, étnico-racial e distribuição pelos cursos dos alunos que ingressaram por conta do bônus ainda não foi finalizado. A pró-reitora informou em entrevista no dia 4 de outubro que em mais uma semana terminaria o perfil desse conjunto, mas já se sabe que “hoje o aluno das faixas de renda mais altas não estão na escola pública. Agora, temos que ir depurando esses dados”, disse a pró-reitora.

A Educafro solicitou da USP informações mais detalhadas desses alunos e acesso à base de dados brutos da Fuvest desde 2001 a fim de realizar pesquisas e avaliações, mas a reitoria ainda não deu resposta sobre o assunto.

Segundo a pró-reitoria, para o vestibular de 2008 tudo permanece igual, com a diferença de que o candidato de escola pública escolheu, no dia da inscrição, se quer ou não receber o bônus de 3%. “Agora nós estamos estudando se é o caso de ampliar esses 3% ou não, mas não para o vestibular de 2008”.A reitoria também colocou em andamento ainda esse ano o programa Embaixadores da USP, onde alunos de escola pública que passaram na USP voltaram às suas escolas para divulgar o Inclusp, e está realizando um estudo sobre o uso da avaliação seriada na Fuvest, cuja proposta deverá ser apresentada em 2009. Selma Garrido destaca que não vai colher grandes resultados nessa gestão. De acordo com ela, não dá para medir a qualidade do programa só por este aspecto “porque agora vem uma série de depurações nos dados e o acompanhamento do rendimento desse estudante na universidade, que nós só vamos poder fazer no começo do ano que vem, que é quando termina o primeiro ano”, disse, referindo-se ao primeiro ano de curso dos ingressantes de 2006.

Uma Comissão Aberta para Discutir o Inclusp foi formada durante o processo de ocupação da reitoria por alunos de graduação e pós-graduação da USP, e tem pesquisado e promovido o debate sobre o Inclusp dentro da universidade. A Audiência foi um dos pontos de pauta do acordo de desocupação da Reitoria em junho desse ano. A Comissão solicitou que a Audiência fosse realizada no campus Butantã e a proposta foi recusada pela reitoria. Assim, a audiência está agendada para o dia 22 de outubro, no Campus da EACH na USP Leste, às 18hs, e será viabilizado um sistema de teleconferência ao vivo para todos os Campi da USP. Ainda não se sabe se a reitoria divulgará o evento e enviará ônibus para o transporte dos interessados.

De acordo com informações da Comissão, a audiência deve contar com a presença do coordenador do Inclusp, o coordenador da Fuvest, a pró-reitoria de graduação e os representantes de movimentos sociais e cursinhos populares.

Segundo Douglas Belchior, a Educafro estará presente, e há ainda uma outra ação a ser realizada no sentido de dialogar com a instituição, “a pró-reitora se comprometeu no encontro com a Educafro a convocar o Conselho de Graduação para ouvir a avaliação da entidade sobre o Inclusp”, afirma.

O inquérito sobre o Inclusp no Ministério Público

Segundo a promotora do Grupo de Atuação Especial de Inclusão Social (GAEIS) do Ministério Público de São Paulo Érika Pucci da Costa Leal, na última quinta-feira, dia 11 de outubro, havia sido agendada uma Audiência Pública na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, que foi desmarcada através de um email enviado pela assessora do deputado José Cândido, pois os reitores da USP, UNESP e UNICAMP, convocados por se considerar necessária uma solução comum para o Estado, não haviam confirmado presença.

Segundo a promotora, a Educafro apresentou uma representação junto ao Ministério Público por acreditar que o programa não é suficiente para a inclusão social, e foi instaurado um inquérito civil que consta de várias providências que incluem: o pedido a outras universidades dos seus programas de inclusão social – entre elas a UFRJ, UFPR, UFBA e Unicamp, e esclarecimentos da USP sobre os resultados obtidos. A promotora informou que na última sexta-feira, 5 de outubro, foi para os autos uma mídia digital fornecida pela USP com os dados dos alunos matriculados nos vestibulares de 2005 a 2007, que vai ser encaminhado para a perícia para que seja transformado em estatísticas a fim de levantar informações relevantes para o inquérito.

A promotora informou que em um dos documentos enviados pela USP relativo ao vestibular de 2007, foi constatado que houve um aumento de 11% no número de pessoas egressas da rede pública, mas que houve uma queda no ingresso na faixa de renda de até 500 reais, de 6,1% em 2006 para 5,2% em 2007, e o número de ingressantes da faixa de renda de 500 a 1500 caiu de 45,2% em 2006 para 39,5% em 2007, o que indica que o programa não está sendo eficiente para as camadas mais pobres da população. Os próximos passos, segundo a promotora, serão: encaminhar a mídia digital para a perícia, solicitar cópias dos projetos de lei sobre o tema que estão na Assembléia Legislativa e marcar uma nova audiência. Mesmo que não haja a presença dos reitores das três universidades do Estado de São Paulo – USP, UNESP e UNICAMP, a audiência na Assembléia Legislativa pode ser realizada com a presença do movimento social e dos deputados, a fim de se chegar a um denominador comum.

O debate sobre o sistema implantado

Segundo Selma Garrido, a USP investiu em um sistema que beneficia a escola pública porque “do conjunto de alunos que cursa o ensino médio no Estado de São Paulo, 85% cursa em escola pública estadual e o restante em escola particular. Na USP nós temos o inverso disso: 75% dos nossos atuais estudantes são egressos da escola particular. Temos uma questão que aponta a desqualificação da escola pública, mas que também mostra que essa população que está na escola pública tem competência para cursar a USP”. A decisão pela adoção desse sistema foi tomada com base nesse percentual de escolas públicas e em informações sócio-demográficas, “mostrando que na escola pública nós temos os alunos de menor renda e os alunos negros”, afirma a pró-reitora.

Para a Educafro o posicionamento contra as cotas da USP é resultado de um processo histórico. “Só a USP diz que é um problema social. Todas as outras associam o problema social ao recorte étnico – racial”, afirma Douglas Belchior. A Educafro acredita que a cota deve ser calculada por critérios de proporcionalidade em relação à população negra da região. “O que nós defendemos faria justiça a essa média nacional de 85% de alunos de escola pública com recorte de renda e à questão racial, pois com certeza atingiria o negro e melhoraria o nível acadêmico da universidade, a pesquisa e a produção porque nas instituições que adotaram as ações afirmativas os estudantes de escolas públicas e negros têm desempenho melhor. Além disso, haveria uma diversidade de opinião, que faria a universidade respirar novos olhares, novos pensamentos”, afirma Cleyton Borges, também da coordenação nacional da Educafro.

Ao tratar da posição da Educafro, Selma Garrido sugere que a entidade deve se voltar para a educação básica, “porque se nós ampliarmos a presença do negro na educação básica também ampliaremos a possibilidade de acesso nas universidades. Estamos falando de um problema estrutural da sociedade brasileira e que é histórico. Eles defendem que as cotas seriam uma forma de abreviar os caminhos, porque historicamente a própria origem do negro do Brasil é pela escravidão. Então é muito forte essa questão de uma dívida histórica da sociedade brasileira, e a USP está dando sua contribuição. Ela não vai resolver esse problema sozinha, não é da sua alçada, mas ela está atenta”, afirma.

A Educafro coloca que a entidade também realiza ações políticas pela melhoria das condições da educação básica. “Mas se o Estado assumir essa questão hoje essa melhoria vai levar 30 anos, então muitas gerações ficarão sem ensino superior. Tem poucas vagas e nós queremos lutar por essas poucas vagas e pela expansão”, pontua Cleyton Borges.

A pró-reitora argumentou também que “as universidades têm perfis diferentes. No caso, a USP é uma das universidades melhor conceituadas no Brasil, na América Latina e até no mundo”, disse, acrescentando que a pró-reitoria está aprofundando um estudo em cima dos dados do IBGE sobre a porcentagem de negros no Estado de São Paulo. “De modo geral o estudo diz que no Brasil você tem uma porcentagem de negros e brancos que está muito próxima, negro entendendo pretos e pardos. No entanto, quando você regionaliza, você vai para o Nordeste, 80% da população é negra. No Sul, 80% da população é branca. O Sudeste, no caso São Paulo, fica no meio, e dentre os negros a população parda é muito maior do que a população preta, diferente do Estado da Bahia. Então a questão das cotas tem que ser contextualizada não só conforme as culturas das várias universidades, como também nesse contexto sócio-demográfico”. Segundo Selma Garrido, a USP está fechando um convênio com a Secretaria Estadual de Educação e com a Secretaria de Ensino Superior para colaborar para a melhoria da qualidade da educação no ensino médio, e o Inclusp sinaliza para a Secretaria Estadual de Educação que é possível tomar medidas que mostrem que recursos são necessários para a melhoria da qualidade do ensino.

Segundo dados do IBGE do censo do ano de 2000, os negros constituem 49,4% da população brasileira. Uma análise da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE) da Secretaria de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo mostra que o Estado de São Paulo contava, em 2005, com a maior população negra do país, com aproximadamente 12,5 milhões de pessoas de cor preta ou parda, correspondendo a 31% dos habitantes do Estado, segundo dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2005. Entretanto, em termos relativos, São Paulo é um dos Estados com menor proporção de negros, juntamente com os da Região Sul, pois, nos demais, as pessoas que se declararam pretas ou pardas equivalem a mais de 50% da população.

Quanto à polêmica questão de que as cotas podem estimular a segregação racial, usando o fenótipo para discriminar, Douglas Belchior levanta que a própria USP tem usado o recorte étnico-racial para afirmar o sucesso do programa, e que acreditar que a cota segrega é uma simplificação. “Se você pegar na USP tem menos de 9% de alunos negros, 90% das empregadas domésticas são negras, 70% de quem é morto pela polícia é negro, a mulher negra ganha, em média, menos do que a branca, e a mulher branca tem renda superior ao homem negro. Há uma questão racial que supera até mesmo a questão de gênero. Há uma segregação explícita e empírica, que não foi inventada pelo movimento negro. As cotas são uma segregação, sim, mas é positiva, é para incluir”, afirma.

Outra questão que a Educafro considera essencial para esse debate é analisar o uso do fenótipo negro na história do país. “Nunca existiu navio branqueiro, políticas de imigração africana. O Estado brasileiro implementou ações políticas discriminatórias, que foram fruto de posições políticas racistas, e que historicamente segregam e segregaram, e impediram o acesso ao trabalho, ao estudo e a condições dignas”. Entre outras ações de segregação do poder público, Cleyton menciona que “havia uma lei na primeira metade do século XIX que proibia o filho do escravo de ir à escola.”, e acrescenta: “A nossa defesa de cotas é a seguinte: tem uma parcela da população que o Estado segregou. A constituição faz distinção para o trabalhador rural, para a mulher, para o portador de deficiência e para o indígena com o mesmo fundamento: reparar um processo histórico de exclusão”.

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