Foto: Filme Quanto vale ou é por quilo?
Na cornucópia das tragédias sociais brasileiras, a notícia da menina da prisão do Pará horrorizou a boa consciência do país. No passo seguinte, descobriu-se que eram pelo menos quatro casos similares. Quem sabe, talvez sejam mais… Como se não bastasse o que é divulgado sobre o inferno prisional enfrentado por cerca de 350 mil pessoas, sabe-se, agora, que os suplícios podem ser ainda maiores. Na verdade, há um pouco de cinismo e hipocrisia nisto tudo.
O que se podia esperar de um sistema que defende a retórica de ressocialização do criminoso, mas que é pautado em punições, baseadas no desrespeito dos mais básicos direitos humanos? O caso horripilante das moças do Pará consiste em um grão de areia no painel dantesco do sistema prisional em vigor. Choca por se tratar de mulheres, sendo uma delas, ainda adolescente. Irrita pelas justificativas oficiais, que incluíram a trágica afirmação de que não haveria outra solução. Comove pela placidez do olhar de uma das presas, captado pelas lentes da grande mídia.
De acordo com a declaração dos direitos humanos da ONU (1948), “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Foi preciso que a notícia corresse, para que algumas autoridades tomassem providências. A menina foi retirada e levada para algum lugar com maior proteção e assistência. Procedeu-se com decência, frente ao escândalo do fato noticiado.
O episódio deveria levar a uma ampla avaliação do que ocorre atrás das grades do país. Não se pode imaginar qualquer alternativa ao controle real da criminalidade, com prisões superlotadas, presos ociosos, doentes e tudo mais que se possa imaginar de degradação humana. Por mais brutais que tenham sido os crimes cometidos, o Estado não pode adotar o princípio da vingança e da destruição do outro.
Ainda não foi inventado um meio de se eliminar as prisões, para quem atenta contra a segurança dos indivíduos e dos seus bens. Lamenta-se que elas sejam usadas, principalmente, para internar quem comete crimes menores. É terrível constatar que elas abrigam, quase que somente, os mais escuros, pobres e menos letrados. E que estes sejam tratados de modo tão brutal. Sabe-se que nestes estabelecimentos reproduz-se a hierarquização externa. Os mais bem sucedidos, articulados e endinheirados conseguem privilégios. Os ‘pés-de-chinelo’ ficam sem nada.
As prisões são uma extensão da vida social, contendo um pouco de tudo que é encontrável no mundo externo. Dentro delas, vive-se a mesma sociedade, levada ao extremo e sob o controle direto do poder público, compartilhado com o poder paralelo do crime. Elas deveriam ser repensadas como verdadeiros espaços de ressocialização e, fundamentalmente, de trabalho e de estudo. A existência de inúmeros casos de ex-presos que conseguem abandonar a vida anterior prova que isto é possível. Não são novas, as tentativas bem-sucedidas de melhorar o espaço prisional. O elevado número de reincidências e de problemas gravíssimos na vida carcerária mostram a responsabilidade do poder público. O caso da menina do Pará ilustra o mesmo problema.
É difícil imaginar um mundo sem prisões, até porque existem pessoas soltas por aí que provocam mais danos sociais do que muitos dos que estão hoje na cadeia. Os responsáveis pela menina presa no Pará, por exemplo, deveriam estar no seu lugar. Se isto ocorresse, poder-se-ia viver em um mundo melhor. Como imaginar a existência de padrões mínimos de justiça social, se a corda nunca arrebenta na ponta puxada pelos maiores criminosos? Se não pode haver um mundo sem prisões, haveria de se pensar uma nova lógica para o uso destas.
Elas deveriam ser transformadas em verdadeiros espaços de melhoria do ser humano. O mundo seria melhor sem nenhuma prisão e sem nenhum preso. Para isto, a renda teria que ser mais dividida. A propriedade da terra e dos imóveis urbanos deveriam ser reformadas. Os bens culturais realmente importantes teriam que ser mais socializados. Os direitos humanos e os princípios democráticos deveriam ser efetivamente respeitados, indo muito além da retórica de suas defesas. Assim poder-se-ia pensar na utopia de uma sociedade mais justa, onde nenhuma menina de 15 anos fosse para a cadeia, tendo que dividir e dividir-se com duas dezenas de homens adultos na mesma cela.
(*) Luís Carlos Lopes é professor; este artigo foi publicado originalmente no portal Carta Maior