A Matriz Estruturalista na ciência social aplicada na América Latina- 3
26 de novembro de 2009, por Bruno Lima Rocha
Neste breve artigo encerro a trilogia de difusão científica cujo foco é a aproximação da Matriz Estruturalista de pensamento científico social e sua operacionalidade no tempo contemporâneo (histórico) e no espaço geográfico conhecido como América Latina e Caribe. Uma vez considerados estes fatores, retorno à matriz estruturalista que deu origem aos estudos que nutriram a origem deste trabalho. Vou ao encontro das raízes desta “escola” estruturalista. Não passo nesse momento por George Canguilhem (1904-1995) – de quem Michel Foucault (1926-1984) foi assistente – mas por um livro que demarca o início da afirmação da idéia de que o inconsciente é irredutível e opera sobre qualquer formulação de pensamento. Estou me referindo à obra cuja primeira edição original em francês é datada de 1938 e tem a autoria de Gastón Bachelard (1884-1962). Para este trabalho, o material utilizado é a edição hispano-mexicana de 1972 (BACHELARD, Gastón. La Formación Del Espíritu Científico. Cidade do México, Siglo XXI, 1972, 21ª edição).
Além da linguagem refinada, por vezes aproximando-se da poesia, Bachelard como filósofo e epistemólogo nos oferece um rico manancial de possibilidades de crítica e de conhecimento sobre a formação do pensamento científico. Para o propósito aqui empregado, mais relevante do que a afirmação de que o “tema ou a abordagem é ou não científico”, importa mais a aplicação de método de rigor e precisão. O esforço do conhecimento demanda a existência do “espírito científico”, que pelas palavras do próprio Bachelard implica em:
Mostraremos o efeito da memória sobre a razão. Insistiremos sobre o fato de que não pode prevalecer de um espírito científico, enquanto não se está seguro de, a cada momento de sua vida mental, ter de reconstruir todo seu saber. Somente os eixos e bases racionais permitem tal reconstrução. O resto é apenas baixa mnemotecnia. A paciência da erudição não tem nenhuma relação com a paciência científica. (Bachelard, 1972, p. 10).
Faço acordo com esta postura e vou além. Vejo que existe um duplo discurso. Na maior parte das vezes, uma corrente hegemônica de um determinado campo se afirma como científica, mas se nega a rever seus próprios paradigmas. A afirmação de cientificidade se dá sobre uma posição de força e controle dentro de um campo de saber ou subárea. A amplitude de visão na politologia (ciência política) implica por tanto a consideração de todos os cenários analíticos e a explicitação da premissa. Não existe “espírito científico” possível de florescer quando uma idéia de equilíbrio ótimo prevalece na formulação teórica por em cima das práticas políticas realmente existentes. A formulação de tipo-ideal, ou melhor, de tipos ideais, entendo como modelagem e não como “base científica”.
Por isso vejo como positiva a atitude inversa. Assumir a tipificação de modelos como influência direta da normatividade, portanto é algo intencional. A normatividade que gera modelos serve como força motivadora para a pesquisa, o estudo, a análise e a incidência. Equivale para a epistemologia como a esfera ideológica é para a política. A normatividade é necessariamente uma construção de idéia.
As idéias têm irredutibilidade e uma existência material tão “concreta” como qualquer matéria de tipo físico. Isto vale para a idéia normativa e a capacidade de abstração para a realização científica. Na ausência de abstração, prevalece qualquer coisa, menos o “espírito científico”. Indo ao encontro de Bachelard: “Em todas as questões, para todos os fenômenos, é necessário passar antes de tudo da imagem para a forma geométrica e logo após, da forma geométrica para a forma abstrata, e recorrer o caminho psicológico normal do pensamento científico.” (Bachelard, 1972, p.10).
Reconheço que é difícil compreender esta base de pensamento e ainda mais difícil nos dias que vivemos, quando a hegemonia em no campo da ciências humanas e sociais em geral (aplicadas ou não) e da politologia em específico, opera dentro de uma suposta “racionalidade” pré-concebida e absoluta. Bachelard também afirma que o pensamento abstrato não é sinônimo de “má consciência científica” como o pensamento trivial costuma colocar. Entendo que o conceito se dá de forma abstrata em seu formato original. Por isso “a abstração ativa e dinamiza o espírito cientifico” (Bachelard, p.8). É no estado abstrato – posterior e mais avançado aos estados concreto e concreto-abstrato, classificação de estados de pensamento – que “o espírito empreende informações voluntariamente substraídas da intuição do espaço real, voluntariamente desligadas da experiência imediata (hegemônica e aparentemente onipresente) e até polemizando com a realidade básica, sempre impura e sempre disforme “(p.11).
É na falsa aparência de “concretude” que o pensamento hegemônico do momento se arvora e atribui “cientificidade”. Vejo a normatividade como necessária e fundamental para alimentar o “espírito científico”, mas ao mesmo tempo a normatividade não deveria nem substituir um fenômeno realmente existente, ou ainda pior, simplesmente negar que estes fenômenos existam. Na ausência de “pesquisa”, as práticas políticas e sociais existentes na sociedade são vistas como “empiria” quando o que na verdade falta é a abstração e modelagem teórica que possa formatar hipóteses de pesquisa e teorias de médio alcance que dêem sustentação para estas mesmas experiências. Qualquer ilustração fora desse marco torna-se mais normativa que a acusação de normatividade que os inauguradores de experiências e leituras de fenômenos sofrem.
Faço acordo com Bachelard a respeito do tipo de ilustração necessária para exercer o “espírito científico” e vejo estas bases condizentes com as vontades exercidas para solucionar as questões fundamentais para as democracias latino-americanas e o pensamento político e social que deve surgir e se afirmar como fruto da busca pela solução destas questões. Segundo o filósofo a ilustração deve ser normativa e coerente; deve tornar claramente consciente e ativo o prazer da excitação espiritual no descobrimento da verdade; isto porque, tamanha fecundidade tem de resultar em algo, porque uma hipótese científica que não levanta nenhuma contradição se aproxima de ser uma hipótese inútil, da mesma forma que uma experiência que não retifica nenhum erro, que é meramente “verdadeira”, que não provoca debates, para que serve? (p.13)
Por fim, duas conclusões são essenciais para compreender a definição de experiência científica a qual este analista que aqui escreve se filia. A primeira afirma que “uma experiência científica é, portanto, uma experiência que contradiz a experiência comum”. Portanto, necessariamente não pode aceitar a hegemonia de pensamento como algo perene, mas simplesmente circunstancial e fruto da correlação de força de momento. A outra vai ao encontro da necessidade de crítica fundamentada, contrapondo um sistema de idéias com outro e contra outro. Deste modo, é impossível para uma ciência humana montar uma teoria com o pressuposto e as bases teóricas e metodológicas incompatíveis com os objetivos de pesquisa, incentivados e motivados pela normatividade prévia. Assim, “a crítica racional da experiência é solidária com a organização teórica da experiência”.
Diante da incoerência teórica e o mosaico louco de conceitos sem pé nem cabeça oferecidos pelos defensores do paradigma da democracia liberal como elemento de “justiça”, entendo que é dever de ofício dos analistas e politólogos latino-americanos comprometidos com a emancipação das maiorias de nosso Continente, a formulação e a defesa de formas de democracia direta e participativa, superando também a falsa dicotomia de que a igualdade social é incompatível com a liberdade política. Esse axioma nem chega a ser falsificável por sua inconsistência de nascimento. O que precisamos é afirmar essa concepção em alto e bom tom, explicitar a NULIDADE (pior do que falsidade) dos axiomas liberais de tipo burguês assim como do autoritarismo herdeiro das ditaduras da Cortina de Ferro e adjacências.
A Matriz Estruturalista nos permite mergulhar sobre nós mesmos, diante da base histórico-estrutural e, através desta, fazer a ciência humana e social aplicada na luta pela radicalização da democracia na América Latina. Para esta tarefa, o aporte de trabalhadores intelectuais como Bachelard, Canguilhem, Althousser e Foucault é simplesmente inestimável. Cabe a leitura crítica (e não um pastiche superficial como o que costuma ocorrer) e a disposição pessoal de analisar, criticar e incidir sobre as sociedades concretas, por mais cruéis que estas sejam.