Poucos saberão melhor do que as mulheres o que é ter suas opiniões interditadas, sua participação social proibida, sua vida cerceada, sua existência invisibilizada, sua liberdade de expressão limitada. Assim como em tempos passados, a mulher ainda é subjugada atualmente, seja por fundamentalismos religiosos, ou por fundamentalismos econômicos que colocam o mercado como motor da História. Sua publicidade, o “marketing”, o “merchandising” (e tantos outros “conceitos” importados), seguem a construir a cultura dominante e os valores necessários para que o dinheiro reine e o mercado governe. E nessa cultura a mulher é mercantilizada por vários meios.
“É inegável a importância da mídia, enquanto poderosa educadora informal”, escreveu Rachel Moreno no resumo do livro. “Sua programação, conteúdo e publicidade alcançam um público maior ou menor, dependendo do meio, chegando a 98% dos lares brasileiros, no caso da televisão. As mulheres, por serem responsáveis por 85% das decisões de consumo, têm sido seu objeto preferencial”. Psicóloga de formação e pesquisadora, com anos de atuação em torno do tema Rachel conhece bem o discurso que nos mostra “o caminho do sucesso”, como ela diz. “Ele é desde cedo introjetado, passando a contribuir significativamente para a formação da nossa subjetividade, para o que queremos ser. De modo que já não precisamos ser vigiados ou punidos, nós mesmos nos cobramos a semelhança e proximidade com a imagem de sucesso que nos assombra e controla. E isso ocorre desde a mais tenra infância, com adequação para todas as faixas etárias”.
Por isso continuamos a luta por liberdade de expressão, pelo direito à comunicação, mesmo depois do fim da ditadura. E as mulheres têm sido protagonistas nesta demanda. De há muito tempo, as feministas questionam a imagem de mulher que a mídia difunde. Rachel Moreno recorda que “incomodadas com os excessos da imagem da mulher na publicidade, nas músicas, reagimos pontualmente, com mais, ou menos sucesso”. Poucas vezes tivemos vitórias, como aquela em que o Instituto Patrícia Galvão conseguiu a retirada dos bares das “bolachas” da Kaiser que diziam “mulher e cerveja especialidade da casa”, e o anunciante teve que realizar seminários sobre a publicidade e a imagem da mulher em todo o Brasil. Como cerveja parece ser um dos principais produtos a “vender-se” junto com a mulher, foram várias as denúncias. O Observatório da Mulher, organização fundada por Rachel, mantém um processo em andamento contra a campanha de 2006, “Musa do Verão”, da Skol.
Rede Mulher e Mídia
“Com iniciativas como as da ONG TVER, da Campanha pela Ética na TV, começamos a focar a programação, encaminhando ao Ministério Público Federal as queixas mais freqüentes dos telespectadores”, continua a ativista. Estas iniciativas são dos anos 80 e 90, apesar da Constituição de 1988 incluir todos os pontos que consideramos necessários para democratizar os meios de comunicação no Brasil, esses direitos nunca foram regulamentados e respeitados, pelo contrário. No ano de 2007, na preparação do ‘8 de março’ esse assunto ganhou destaque, como narra Rachel. “Descobrimos que a imagem da mulher em nossa mídia é absolutamente seletiva, invisibilizando o que não lhe interessa. E, nisso, além de nossa diversidade étnico-social-etária, as nossas demandas atuais, a pluralidade de nossas visões de mundo. Para conseguir os seus objetivos , essa imagem vem carregada de valores, focada no consumo, reproduz os estereótipos, alimentando assim também os preconceitos, e ora banaliza ora espetaculariza a violência”.
Disso surgiu a Articulação Mulher e Mídia, reunindo várias organizações de mulheres que levaram a questão da imagem da mulher na mídia a outros movimentos e também ao Ministério Público. “Queríamos um mês de ‘direito de resposta’ em todas as emissoras, para mostrar a realidade das mulheres brasileiras em toda a sua pluralidade e atualidade”, lembra a feminista. “Algumas de nós levaram a questão na Segunda Conferência de Mulheres em 2008, tendo sido nossas reivindicações incorporadas no Segundo Plano de Políticas para as Mulheres”. A AMM desenvolveu uma série de ações, fez seminário nacional, construindo a Rede Mulher e Mídia. Essa rede participa junto com outros movimentos da luta para democratizar os meios de comunicação, que conquistou a realização da primeira Conferencia Nacional de Comunicação. As mulheres tiveram destacado protagonismo no processo da Confecom, mas não viram suas resoluções avançarem ou suas demandas específicas levadas muito a sério.
Controle social é direito da sociedade
A luta continua e o inimigo é poderoso, embora se resuma a uma dezena de grupos econômicos “donos” de centenas de meios de comunicação, grande parte obtida por concessão pública. Como disse Rachel, “a sociedade civil fez a sua parte, se organizou, sistematizou suas demandas, apresentou-as nos fóruns mais adequados, pressionou”. O controle social da imagem da mulher na mídia, da publicidade dirigida às crianças, são sérias reivindicações das mulheres, assim como dos movimentos negro, lgbtt, migrantes e imigrantes, e outros segmentos estereotipados e subalternizados pelos meios de comunicação. “Os ‘donos da mídia’, continua a feminista, “que a rigor deveríamos ser nós, a sociedade brasileira em sua plenitude, sendo eles meros concessionários temporários, reagiram, modernizando os termos para defender melhor os seus interesses privados. Os empresários nos acusaram de pedir a censura… de tentar cercear a “liberdade de expressão”, incluindo o novo termo que cunharam, de ‘direito humano à liberdade de expressão … comercial’!”
Incomodada com isso, a pesquisadora resolveu demonstrar que o controle social da mídia não é invenção das feministas. “Decidi pedir a companheiras jornalistas, feministas, ativistas da América Latina, da Europa, do Canadá, que me enviassem os dados referentes ao controle social da imagem da mulher na mídia, nos países em que ele fosse praticado”. Assim, o livro que Rachel estará lançando – “A imagem da mulher na mídia – controle social comparado”, apresenta uma “sistematização do arrazoado utilizado pelos diversos países que exercem alguma espécie de controle sobre a mídia, com participação social, e o nome que a isso dão”. O trabalho se debruça sobre a legislação do México, Peru, Argentina, Nicarágua, Chile, Estados Unidos, Canadá, União Européia, Itália, Espanha, Suécia, Inglaterra e França.
Não sem antes passar pela situação no Brasil, mostrando o que consta na Constituição, no II PNPM (Plano Nacional de Políticas para as Mulheres), na Lei Maria da Penha, nos acordos internacionais dos quais somos signatários (Metas do Milênio, Beijing). Todas estas legislações “nos permitiriam estabelecer este controle social”, assegura a autora. Rachel Moreno espera que a obra seja aprofundada, pois o assunto merece. “Cabe, a partir dela, um aprofundamento da discussão teórica, puxando para diversas facetas – psicologia, direito, comunicação, feminismo, minorias”, diz. “Assim como cabe uma avaliação, em cada um dos países citados, das mudanças e avanços que a legislação adotada propiciou em termos da maior igualdade de gêneros, e da imagem e situação da mulher na sociedade”. Ela espera também que sirva de estímulo para o avanço da reivindicação do movimento feminista e das mulheres em geral, bem como dos diversos segmentos e agrupamentos envolvidos em comunicação. Assim como espera que, a partir do conhecimento da diversidade de soluções e caminhos adotados pelos países citados, nossos parlamentares se animem a apresentar Projetos de Lei que contemplem esta nossa causa.
No lançamento, haverá um debate com a presença de Rosane Bertotti, da CUT e do FNDC, autora de um dos prefácios do livro. Os outros debatedores serão Juvandia Moreira Leite (presidenta do Sind. Bancários), Altamiro Borges (Barão de Itararé) e a deputada federal Luiza Erundina, além da autora, claro. “Garantir às mulheres espaço que expresse sua presença e sua importância real na sociedade”, escreveu o professor Venicio Lima (UnB) no outro prefácio, “é o que a regulação e/ou a autorregulação do mercado de mídia já realizam nos doze países e na União Européia pesquisados neste ‘A Imagem da Mulher na Mídia – Controle Social Comparado’, realizado por Rachel Moreno, com a colaboração de Tereza Verardo. Na verdade a principal falácia do argumento dos atores que resistem a qualquer tipo de regulação da mídia é que ela ameaça a ‘liberdade de expressão’. A pergunta óbvia a ser feita é ‘de quem é a liberdade de expressão que estaria sendo ameaçada’?”