Tristes tempos em que o lixo tem valor econômico e o Ministério Público se empenha a crimininalizar a miséria e o desespero das pessoas em extrema vulnerabilidade
Lendo agora as mensagens sobre as contra-razões apresentadas pela Defensoria Pública Pública do Rio Grande do Sul contra recurso do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul com vistas a condenar dois cidadãos que estavam “revirando o setor de descartes de alimentos (…) vencidos e (…) iriam ser descartados”, em área de pátio do supermercado BIG, fiquei muito reflexiva… não exatamente surpresa em constatar como alguns membros do MP agem perseguindo gente pobre. Esse tipo de postura, aliás, não é nova na História do Ministério Público (MP) brasileiro.
O MP era conselheiro do “rei”
Pensemos no que foi o MP como conselheiro do rei, na época imperial, pensemos no que foi o MP nos primeiros anos da República e durante os períodos ditatoriais: uma instituição para a qual nem se fazia um concurso. E não acho que o concurso somente seja um meio eficaz de ter nos quadros ministeriais pessoas preparadas para lidar da melhor forma com os complexos problemas sociais que o país acumulou ao longo do tempo. É preciso pensar em algo mais, talvez, um estágio mais longo, com uma atuação temporária financiada por uma bolsa- salário, um valor bem menor do que os que se titularizam e atribuindo aos titulares a supervisão dos promotores em formação…sei lá…algo assim.
Bom, mas voltando o MP do passado bem, bem anterior a 88, sabe- se que havia promotores que eram praticamente resultado de indicações políticas. Havia um concurso minado por interesses. E nesse caso, o MP servia a quem?
1988 divisor de águas
1988 foi um divisor de águas, mas hoje vivemos o efeito colateral inesperado porque talvez inimaginável nessa época, da onipotência ministerial calcada no discurso de ser o MP a instituição que defende a sociedade – substituindo- a. Não estou dizendo que ele não a defenda nunca ou que não deva, mas que essa atribuição foi superdimensionada e posteriormente deformada.
No fundo, a reflexão que me toma o espírito agora é no sentido de chamar a atenção para o fato de que esse discurso sobre o MP defensor da sociedade, repetido com tanta ênfase, o empodera para o bem e para o mal.
Faço essa ressalva porque ainda estou tomada de perplexidade e certa indignação com a entrevista de ontem na UOL com o ex- procurador da Lavo Jato (LJ), Carlos Fernando.
Uma fala inteligente porque aparentemente asséptica em termos ideológicos para o grande público. Uma manifestação de alguém que parece um porta- voz da “nobreza ministerial” se declarando frustrado com o sistema de Justiça ao afirmar que: ” a LJ foi ingênua ao querer punir poderosos”, afirmação que foi seguida do comentário: de que o MP não pode servir para punir negros e pobres.
Quando se reflete um pouco mais sobre tudo que ele disse se conclui quão perigoso é ouvir isso da boca de alguém que revelou na sua atuação total desprezo pela democracia representativa através de partidos políticos. Aliás, ele endossou isso, de algum modo, na entrevista ao generalizar a corrupção como algo próprio e exclusivo dos partidos políticos e de governos, sem atentar que não existe corruptor sem corrompidos e que o sistema capitalista, por exemplo, não é imune à corrupção em menor ou maior grau. Ao contrário, se alimenta dela criando mecanismos para mantê- la em níveis de conveniência e conivência.
Em outras palavras, fiquei com a impressão de ouvir um discurso estrategicamente construído para apontar um fato: o MP persegue negros e pobres ( isso é verdade! Não discordo mas não é todo o MP) e em virtude disso, a correção do papel ministerial está em punir poderosos. É certo! Porém o que impressiona é a defesa dos métodos ousados e avançados e abusivos da LJ que tratoram os princípios liberais o qual o Estado brasileiro a partir de 88 foi forjado e seus agentes foram encarregados de manter. Embora eu tenha muitas restrições à ordem liberal que se revela, na prática, hipócrita, ela é o contorno, a moldura do nosso Estado e não pode ser arrancada. E uma de suas características é justamente valorizar a democracia representativa através de partidos políticos.
“a ordem liberal é o contorno, a moldura do nosso Estado e não pode ser arrancada”
Pois bem, ao ouvir esse Procurador enojado com a moldura política- partidária, percebi que subjacente à fala dele está um ” não- dito” ( no sentido psicanalítico) de que o MP precisa tomar o poder e arrasar os partidos políticos.
a “cartilha” nazista de Carl Schmitt
Enfim, nada que pareça fugir da cartilha nazista de Carl Schmitt através do decisionismo cuja fronteira é o voluntarismo.
Ele chegou a declarar que vota não por preferências pessoais, mas vota naqueles que podem realizar um projeto. Nesse sentido, disse que se Moro se candidatar poderia, sim, votar nele. E num “ato falho” disse: “eu até brincava que não votaria nele porque ele não tem experiência política”. Usou o verbo ” brincar” no passado e no contexto da fala parecia ser algo corriqueiro. Aí na minha cabeça veio a pergunta: quando esse tipo de brincadeira se fazia? Na época da LJ? Se assim ocorria cogitava- se desde então da atuação política- partidária do MP por seu braço pseudotécnico e verdadeiramente ideológico da LJ, né?
“”o ato falho do Carlos Fernando passou batido pelos entrevistadores“”
Pena que o ” ato falho” passou batido pelos entrevistadores e eu fiquei com a perguntas sem resposta circulando na minha cabeça. De igual modo, passou batido pelos entrevistadores o fato de que as críticas quanto à dificuldade em punir poderosos não incluiu Alberto Youssef que, embora condenado, goza da liberdade vigiada e não perdeu a fortuna que ilicitamente construiu e que, aliás, já era figura conhecida do próprio entrevistado quando este atuou no caso Banestado juntamente com Moro.
Não sei vocês, mas eu vejo, além da subversão de ordem constitucional, de viés liberal, uma perversão institucional cujo anseio é criar uma ordem totalitária, na qual a política- partidária tradicional deve ser sufocada. Para tanto, essa política começa a ser negada como algo satisfatório para a sociedade e o que se apresenta no lugar são figuras egóicas como Moro e Deltan Dallagnol…os senhores de ação.
Afinal, tudo é político nesse mundo. Porém, negar a política é uma forma conveniente de não assumir posições através das quais se pode retirar a população da situação de vulnerabilidade social, econômica e sanitária.
O MP lavajatista é político ( embora no discurso negue isso). Ele pretende empunhar o poder. O que se torna lamentável é que a atividade política, no caso da LavaJato, por exemplo, foi retirada da sociedade e se converteu com ajuda dos meios de comunicação corporativos em instrumento para celebrizar os Procuradores que nela atuaram e viabilizar seus projetos políticos, como a Fundação idealizada por Deltan Dallagnol e barrada no STF. A sociedade, em tal situação, serviu de plateia sem conhecer o script.
Imagem capa: Moradores de Fortaleza pegam restos de comida em caminhão de lixo- reprodução redes sociais | Supremo Tribunal Federal – foto Marcelo Casal Jr Agência Brasil | montagem cirandanet