Num país com 74 % de analfabetos e semi-analfabetos é até natural que nossos melhores quadros políticos, econômicos, intelectuais, culturais, religiosos e futebolísticos reproduzam e estejam limitados a esta condição de alguma forma, fazendo parte do mais legítimo processo dialético da História, dando a cada povo, os governantes e líderes que fizerem por merecer.
Quase todos acreditam, como proclamam nossos melhores ou piores meios de comunicação de todas as tendências, que estamos em uma democracia de verdade, em uma república (“res publica”, coisa pública) de verdade, etc.
Rarissíssimos são aqueles que se aproximam da tese de José Saramago, prêmio Nobel de literatura e comunista de carteirinha. Ele afirma não existir esquerda alguma, mas apenas um sistema plutocrático, termo desconhecido quase que universalmente, representando um governo dos ricos ou ditadura do poder econômico. Mas também é o governo dos corruptos (cleptocracia), como a própria mídia nos demonstra todo dia, sem qualquer análise crítica mais profunda, insistindo, paradoxalmente, na tese democrática. Mais exatamente, um Estado criminoso, em sua essência, legitimando o furto da classe trabalhadora pela capitalista.
Se o povo governasse realmente este país, a maioria, formada pelo operariado, não iria determinar uma utilização diferente para os impostos excorchantes que paga em tudo que consome, ou continuaria privilegiando os atuais donos do mercado e do Estado? Permitiria que o poder econômico fosse o fiel da balança, durante o processo que culmina nas inauditáveis urnas eletrônicas eleitorais e nas caixas pretas em que são tomadas as decisões no Poder Judiciário?
Quem afirma que o Estado foi criado pelos ricos e continua, até hoje, por eles, privatizado?
Qual a universidade, faculdade, escola de ensino médio ou fundamental, estatal ou particular, ensina que não vivemos em república alguma, mas em uma re-particular?
Quem difunde o fato de que o Estado continua loteado em capitanias hereditárias, pertencentes, hoje, a algumas poucas famílias e empresas, que controlam cada setor da economia, devidamente representadas nas agências reguladoras, onde o consumidor e trabalhador não comparecem efetivamente, funcionando elas independentes da Sociedade?
Quem consegue distinguir o que é um Estado Democrático de Direito, teórico, formal, ficcional, ideal e abstrato, de um Estado Democrático DE FATO, prático, real e concreto?
Quem ousa defender pública ou privadamente que estamos na mais escandalosa ditadura dos ricos sobre os pobres?
Do capital sobre o trabalho?
Da economia capitalista e egoísta sobre a economia popular e solidária?
Dos bancos e dos brancos sobre negros e índios?
Do latifúndio sobre a agricultura familiar e camponesa?
Dos homens sobre as mulheres?
Dos heteros sobre os homossexuais?
Dos meios de comunicação comerciais sobre os meios comunitários?
E que tudo isto faz parte de um mesmo pacote, cujas raízes teriam de ser arrancadas para a construção de outro sistema econômico, político e social?
Quem é ingênuo o suficiente para considerar que a classe dominante daria um tiro no próprio pé, entregando o osso espontaneamente, a menos que sofra pressão popular suficiente para neutralizar sua capacidade de cooptação (“lobby”) dos Três Poderes da Re-particular?
Assim, é muita simplicidade querer atribuir a qualquer coisa realmente relevante para o processo de libertação das massas e redistribuição da riqueza gerida pelo Estado, como um sistema de comunicação, a possibilidade de ser realmente pública!
Se o Estado é propriedade particular de uma minoria, como ele pode estar à frente de qualquer coisa de vulto, que seja digna de se utilizar, racional, lógica e cientificamente, o termo público?
Qualquer coisa estatal de porte sempre foi e raramente deixará de ser, particular, representando o interesse dos financiadores de campanhas presidenciais, senatoriais, deputantes, governatoriais, etc., em cuja disputa, trabalhadores, negros e mulheres não tem como competir e é quase impossível que um dia consigam uma representação compatível com seu elevado percentual na população. É a tal da correlação de forças, cuja hegemonia milenar permanece nas mãos da minoria mais abastada da sociedade.
Diante desta constatação de que há um quadro terrorista no relacionamento do Estado contra a Sociedade, o que nos resta fazer, então?
João Pedro Stédile nos responde, como intérprete respeitável de um processo de democratização da comunicação que vem lutando contra este Golias midiático, hipnotizando e controlando as mentes de quase todos os brasileiros:
“Precisamos colocar energia na construção e no desenvolvimento de meios de comunicação de massa próprios, como rádios e televisões comunitárias, jornais, revistas, programas de comunicação de todo tipo, sob auspício dos movimentos e organizações populares, para enfrentar o verdadeiro oligopólio das comunicações sob controle da classe dominante brasileira.” (MST Informa, Letra Viva, 23/02/2007)
Nada de renomadas autoridades intelectuais, escolhidas a dedo pelo “Estado autoritário e oligárquico”!!! (Marilena Chauí).
Quando nossos formadores de opinião, nossos revolucionários e militantes, que se pensam de esquerda, compreenderão a tese da Fenaj – Federação Nacional dos Jornalistas, preconizando, desde 1990, que, sem democratização dos meios de comunicação, jamais haverá democracia de fato no Brasil?
Quando a esquerda aprenderá com a direita, a dar valor aos meios de comunicação de massa? Quando terão a humildade de reconhecer que o poder da comunicação verdadeiramente nas mãos do povo, é capaz de reconduzir um governante à Presidência da República, após um golpe de Estado promovido pelas elites locais e estrangeiras, através da grande mídia, como ocorreu com Hugo Chávez?
Quando os verdadeiros petistas ressuscitarão a ideologia assassinada pela direita dominante no partido, e farão com que seja respeitada sua Carta de Princípios que reza:
Sem democracia não há socialismo e sem socialismo não há democracia?
Quando nos será possível escolher entre o socialismo e a barbárie, sobre a qual vivemos a tanto tempo, que ela parece ser o próprio ar que respiramos, o cenário do filme A Vida de Truman ou retirado do livro A Sociedade do Espetáculo e de O Estado contra a Sociedade ?
A apelação em Mandato de Segurança 1999.01.00.013489-4, oriundo do Maranhão, recebeu sentença datada de 11/10/2004, no TRF desta mesma 1ª Região, fundamentada na seguinte argumentação:
“A comunicação de massa desenvolveu-se no Brasil, assim como nos demais países da América Latina, durante os regimes militares, voltados para a política de integração nacional e de prevenção de movimentos subversivos da ordem então estabelecida, o que facilitou a formação de oligopólios, em detrimento da diversificação por meio da instituição de veículos locais e regionais, que se tinham como de difícil controle. Tem tal inspiração o art. 70 da Lei n. 4.117/62, com redação dada pelo Decreto-Lei n. 236/67: Constitui crime punível com a pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta Lei e nos regulamentos. Os serviços de rádios comunitárias ainda não conseguiram romper tais amarras, prova é a timidez com que a Lei n. 9.612/98 tratou da matéria, a ponto de limitar a potência de tais rádios ao máximo de 25 watts ERP e a cobertura restrita à comunidade de um bairro ou vila (art. 1º, §§ 1º e 2º), quando sua finalidade maior é atender à situação das populações rurais de extensos municípios. Sob invocação do poder de polícia, o Estado, que se omite no dever de prestar os serviços, manda lacrar sumariamente as estações instaladas pelas comunidades municipais, sob a justificativa de que representam risco para a navegação aérea, ainda que não se tenha notícia de qualquer queda de aeronave provocada por uma das milhares de rádios que funcionam no Brasil sem autorização formal do Ministério das Comunicações. (…) as rádios comunitárias são a esperança de colocação dos serviços públicos de comunicação de massa na direção correta .”
Quando perguntei ao Plínio de Arruda Sampaio, no Seminário Sentidos da Democracia e da Participação, ocorrido em SP, há alguns anos atrás, sobre o que ele achava dos meios de comunicação alternativos, como o Centro de Mídia Independente [ www.midiaindependente.org/pt/red ], ele respondeu:
“Isto que você chama de meios de comunicação alternativos, são, na realidade, o único meio de comunicação possível.”
Concluí que ele queria dizer serem os demais, na realidade, o Diário Oficial da classe dominante, mesmo quando dividida sobre quem seria o melhor pau-mandado para gerir o Executivo Federal.
Além de tudo isto, fica a desafiar os pobres gatos pingados que ainda são capazes de pensar por si mesmos e escaparam da Matrix que controla quase todos:
O que faremos para impedir ou mesmo tentar impedir, dentro de um processo que nos prepare para os próximos embates, que a renovação da outorga teoricamente pública das emissoras da Rede Globo e outras, seja, como sempre foi, apenas uma formalidade burocrática, completamente dominada pelos senhores do oligopólio, cujos parlamentares que conduzirão o processo são, direta ou indiretamente detentores de concessões? Quando obrigaremos esta decisão a passar pelo crivo da legalidade, da transparência e da moralidade?
Se os movimentos sociais tivessem a compreensão necessária da relevância da comunicação, estariam escandalosamente engajados nesta tarefa e na preparação da I Conferência Nacional de Comunicação, drenando recursos materiais e humanos para que não perdêssemos mais este trem da História.
(*) Heitor Reis é engenheiro civil [ www.heitorreis.fr.fm ], articulista [ www.abn.com.br e www.reforme.com.br/kitnet ] e membro do Conselho Consultivo do Câmara Multidisciplinar de Qualidade de Vida [ www.cmqv.org ] Nenhum direito autoral reservado. Esquerdos autorais (“Copyleft”).