O ano recém findo trouxe uma grande vitória para as mulheres, sobretudo no campo do simbólico, com a eleição de uma presidenta pela primeira vez no Brasil, entre uma dúzia existente no mundo. Mas a campanha eleitoral antecipou também os grandes desafios para o movimento feminista nesta terra em que o Estado ainda se mistura com a Igreja. A começar pela desqualificação permanente da candidata mulher, inclusive por parte do candidato homem e sua família, aliados da grande mídia que passou por momentos ridículos ao tomar partido do enfim derrotado.
Enquanto em Portugal três anos de aborto legalizado comprovam que o número de cirurgias não aumentou, e foi zerado o número de mortes por aborto, no Brasil o debate só é mostrado em grande escala quando convocado pelos fundamentalistas, como foi na campanha. O ano já começou com ações pró vida desencadeadas por padres e bispos do interior de São Paulo, juízes do STF abrandando as punições da Lei Maria da Penha oficialmente, sustentando práticas contra a lei, defendidas pela maioria dos operadores do direito, enquanto casos de violência contra a mulher ilustram noticiários e circulam por redes feministas. Basta dizer que o CIM (Centro Informação Mulher), onde tradicionalmente se realizam as reuniões gerais do movimento de mulheres, acaba de ser desalojado pela Prefeitura, que não respeita o maior arquivo feminista de que temos conhecimento.
Não basta ser mulher
Representando organizações importantes no movimento de mulheres, como a Marcha Mundial de Mulheres (MMM), CIM (Centro Informação Mulher), União Brasileira de Mulheres (UBM), União de Mulheres, Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), Coletivo Dandara, Promotoras Legais Populares, bem como movimentos sociais – MST, MAB, CUT, Conlutas, Unegro, UMM, USP, PUC – e partidos políticos – PT, PSol, PCB, PSTU, PC do B, mais de 50 mulheres fizeram a primeira reunião para organizar o 8 de março deste ano, que cai justamente na terça-feira de Carnaval. Legalização do aborto, mulheres na política e no poder, a imagem da mulher na mídia e no carnaval, mercantilização da moradia, educação, saúde, a necessidade gritante de creches e a violência contra a mulher, assuntos permanentes e urgentes na vida das mulheres brasileiras, continuam em pauta pela autonomia feminina, pela voz de todas.
Temos uma presidenta mulher, mas isso não significou aumento no número de parlamentares eleitas, local ou nacionalmente. O Brasil continua numa posição vergonhosa no tocante a mulheres na política (114ª posição entre 134 países), inclusive na América Latina, onde estamos atrás da Argentina (24ª), Chile (26ª) e Peru (44ª), segundo o relatório Global Gender Gap. Por tudo isso, a importância de colocarmos o debate sobre mulheres e poder na rua neste próximo 8 de março, acompanhado da premissa de que não basta ser mulher – há que ter uma visão feminista sobre a desigualdade de gênero – é destaque entre as feministas. Até porque outro tema que não poderá faltar é a legalização do aborto, sobretudo porque a questão foi levantada e mostrada na mídia recentemente do ponto de vista dos fundamentalistas.
“Não basta a presidenta ser mulher”, segundo Léa Marques , da Secretaria Nacional de Mulheres da CUT, “pode até piorar”. Ela lembrou a importância da luta pela valorização do salário mínimo, junto com a luta por creches. A campanha eleitoral, segundo Luana Bonone (UBM), “gerou um discurso da visão da mulher ainda como cuidadora, mãe, embora a eleição de uma mulher não seja fato menor. Mas o governo vai precisar de pressão social”. Bernarda Perez, do Movimento de Moradia, acha imprescindível o tema do direito à moradia, pois com certeza as principais vítimas das últimas enchentes são as mulheres, já que a pobreza é feminina, as mulheres representam 70% dos pobres do mundo. Ela levantou também a questão da truculência policial na cidade, sofrida seguidamente pelos sem moradia e que está novamente em pauta, devido à luta dos estudantes contra o aumento abusivo do transporte público.
Aborto, violência e carnaval
“A pauta do aborto foi seqüestrada pela direita”, disse Luka , das Mulheres do PSol, “ acabamos tendo o recuo da candidata petista, e toda a repercussão do tema foi pelo lado dos conservadores”. Fátima Duarte, da UBM, relembra os dados sobre a precária saúde da mulher, os números da ilegalidade do aborto e propõe elaborarmos uma plataforma das mulheres para levar à presidenta. Janaína Rodrigues, do PSTU, lembra que a candidata a presidência assinou documento comprometendo-se a não mudar a lei de aborto e destaca as lutas por creche e pelo salário mínimo, “escandaloso o aumento que houve no legislativo e no executivo e o salário mínimo a 545 reais”.
A violência contra a mulher também foi destacada como integrante do capitalismo, “que é excludente por definição, e as mulheres estão entre os mais excluídos”, disse Mercedes Lima, do PCB, para quem “a Lei Maria da Penha deve ser defendida, mas sem ilusões de solução no capitalismo”. Sonia Coelho, da SOF/MMM, lembra bem que os retrocessos do STF na Lei contra a violência doméstica são “a prática que temos do Judiciário em São Paulo, onde não foi feita a implementação do Pacto, onde não temos políticas públicas para as mulheres há 20 anos”. Na campanha eleitoral, continua Soninha, “as mulheres tiveram seu estatuto rebaixado na sociedade, não demos conta de reverter isto. O 8 de março é o momento de reforçar nossa agenda, tentar reverter na sociedade a visão que passam das mulheres, trazer à tona nossas reivindicações”.
Convergência em boa parte dos pontos de vista na análise de conjuntura, o movimento de mulheres em São Paulo está dividido sobre o 8 de março na terça feira de carnaval. Algumas defendem um 8 de março diferente na terça-feira de carnaval e outras preferem adiar a tradicional manifestação de rua. Kika Bessen, da MMM, das mulheres negras e do candomblé, defendeu enfaticamente mantermos a nossa passeata em pleno carnaval, “fazermos um bloco revolucionário com a cara das mulheres” e colocarmos nosso bloco na rua, interagindo com a grande festa popular. Rachel Moreno, pelo Observatório da Mulher, assim como Márcia Balades, pela LBL , disseram que discutiram em suas organizações e também defendem o 8 de março no carnaval. “Porque queremos colocar com força nossa agenda neste 8 de março”, contradisse Soninha, “não podemos fazer na terça de carnaval, não teremos a mesma força política que podemos ter em outro dia”. Rozina , falando pela UBM também critica a manifestação na terça de carnaval, “pois temos muitas mulheres da UBM que participam do carnaval, devemos fazer na quarta, dia 9”.
O principal argumento das que defendem o dia 8 de março é não romper a tradição de marcarmos o Dia Internacional da Mulher com uma grande marcha, fazendo-a de maneira diferente, criativa, sabendo utilizar o evento do carnaval. A defesa de outro dia – 9 ou 12 – diz que a mobilização e organização durante o carnvaval é mais difícil, não combina com festejos de carnaval e que não teremos para quem falar na cidade. Debate vai, debate vem, muitas defenderam a realização de duas atividades no mês, uma no dia 8 de março e outra depois. Todas buscavam unidade para nossa ação de 8 de março. Algumas defendiam apenas um bloco, uma ação para não passar em branco o dia,, sendo a passeata com nossas bandeiras depois. Outras, além da passeata no dia 8 de março, aproveitando o carnaval para falar de nossas reivindicações, sugerem outro tipo de atividade depois como um encontro estadual de mulheres para aprofundarmos a nossa extensa pauta. Outras acham que não conseguimos organizar duas atividades próximas.
Fato é que mobilização e garra mostradas nesta primeira reunião prometem uma grande ação das mulheres pelo Dia Internacional da Mulher. O desafio é levar a unidade da diversidade feminista até o fim, mantendo-se todas num único ato pelo Dia Internacional da Mulher. As reuniões serão agora semanais, as quartas-feiras, a próxima no Sindicato dos Engenheiros, às 18h30.
A foto é do 8 de março de 2009