O avanço das pautas conservadoras de extrema direita: especialistas discutem a servidão voluntária na política atual

Card sobre debate do connservadorismo

Rafael Revadam , Jornal da CiênciaRealizada pela SBPC em comemoração ao “Dia de Luta pela Democracia Brasileira”, mesa-redonda refletiu a ascensão da extrema-direita e de figuras contrárias aos direitos humanos

Como parte da programação que celebrou o “Dia de Luta pela Democracia Brasileira”, comemorado em 5 de outubro, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realizou, na última segunda-feira (07/10), uma mesa-redonda para refletir o crescimento da extrema direita no País e do apoio popular a regimes ultraconservadores que restringem direitos.

Intitulado “A servidão voluntária de volta: por que tantos votam naqueles que vão lhes fazer mal?”, o debate foi mediado pelo presidente da SBPC e professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP), Renato Janine Ribeiro, e contou com as participações do psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, e do sociólogo e professor da UFRJ, Michel Gherman. O objetivo da mesa foi explorar, sob a ótica da filosofia e da psicanálise, os paradoxos da escolha eleitoral que resulta na perpetuação de opressão e perda de liberdade.

Abrindo as falas, o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, justificou a escolha do tema da mesa-redonda ao destacar a relevância do assunto. Segundo ele, historicamente, pesquisas eleitorais mostravam que, em democracias com liberdade de expressão e organização, os eleitores mais pobres tendem a votar à esquerda, enquanto os mais ricos se inclinam para a direita, o que representa um desafio para o poder das classes dominantes. “Então, o que acontece para mudar isso? Falando de uma maneira muito simplificada, produzem-se factoides, produz-se um imaginário que foge dos reais interesses da população e vai para outras questões fantasiosas no Brasil, como visto em abordagens de ‘ideologia de gênero’ e ‘escola sem partido’. Temas que difundiram toda uma imagem falsa, até chegar ao ponto de dizer que os governos pretendiam mudar o sexo das pessoas. Isso tudo emplacou na sociedade, teve efeito, o que gerou a atual situação política que temos hoje, na qual parte da sociedade acaba votando contra seus próprios interesses.”

Janine Ribeiro citou os trabalhos do pensador francês Étienne de La Boétie (1530-1563), em especial, o “Discurso da Servidão Voluntária”, publicado postumamente, que discute a legitimidade de autoridades sobre determinada população.

“La Boétie vai perguntar por que muitos obedecem a um só, por que uma multidão, que é mais forte que um só, obedece a um? E ele responde: ‘Porque se não fosse assim, seria muito fácil virar o jogo’. Depois, La Boétie explica, primeiro, que quem está acostumado com a servidão vai se submeter. Segundo, há religiões e superstições que fortalecem reis e líderes. E terceiro, existe uma pirâmide, uma estrutura de dominação, na qual o rei manda em alguns, que mandam em outros, e assim sucessivamente.”

Para o presidente da SBPC, o filósofo ajuda a entender as motivações políticas de hoje. “A questão que La Boétie mostra nesta forma radical é a questão que aparece em toda a teoria política moderna, que discute o que é a obediência: por que nós aceitamos ser mandados? Por que aceitamos que outros mandem em nós? E, pior, por que tantos aceitam apoiar quem promove políticas que fazem mal a quem os apoia?”

Complementando o argumento sobre a origem da servidão, o psicanalista Christian Dunker e também professor da USP acrescentou os estudos de Wilhelm Reich (1897-1957) aos argumentos de Étienne de La Boétie, introduzidos por Janine Ribeiro.

“Eu colocaria como um pressuposto a própria tentação da tirania, ou seja, a nossa servidão voluntária, como colocada por La Boétie, ocorre pelo fascínio exercido pelo tirano. Também ocorre por um certo efeito colateral apontado por La Boétie, e que a nossa sociedade acabou confirmando ao longo dos tempos. O poder do tirano sofre de uma espécie de patologia interna, o entorno do tirano é composto por bajuladores, pessoas que só falam o que o tirano quer ouvir e que produzem no tirano essa sensação de que ele tem mais poder do que efetivamente tem.”

Dunker afirmou que o fascínio aos tiranos vem de uma idolatria profunda, que não permite questionar aquilo que o tirano defende. “A tese de Reich vai ser que aqueles que adoram os tiranos, que são fascinados pela obediência, no fundo estão procurando uma espécie de reforço, de exercício de violência contra si mesmos. É o dócil, aquele que abre mão da democracia, o que combina com análises recentes que apontam como a democracia está enfraquecendo no Brasil e no mundo.”

Como consequência, essa idolatria vai conduzindo as pessoas a questionarem o sistema político. “A democracia passou a ser entendida um pouco como fracassada. Em vez de uma ideia do porvir, uma ideia que resistiu a tantos anos e a tantos séculos. Por quê? Porque, no fundo, ela orienta desejos. Desejos de incluir mais gente na conversa, desejos de constituir justamente uma sociedade. E a democracia é cara, cara e lenta, ela precisa de tempo para se aperfeiçoar. Então, ela começa a se mostrar incompatível com o nosso momento do capital, o nosso momento neoliberal de organização de produção e de consumo. Aí algumas pessoas começam a olhar para o lado e buscar uma alternativa, e puxam do banco de reservas o fascismo”, complementou o especialista.

Já o sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Michel Gherman, defendeu o conceito de letramento político, no qual as pessoas são “educadas” a seguirem o tirano. “O crescimento da extrema-direita trouxe esse letramento nazista, que se estabelece a partir da frustração, do ressentimento, de uma lógica neoliberal que se fortalece a partir dos anos 10 do século XXI.”

Para Gherman, é importante entender que essa extrema-direita que se debruça no fascismo defende um projeto de passado. “É uma contradição em relação ao que a gente chama de gramática progressiva ou progressista, seja ela de direita de esquerda. Se na gramática progressista, a perspectiva é avançar gradualmente ou radicalmente em relação a um futuro melhor, no fascismo, no nazismo e na extrema direita que hoje avança de maneira muito específica, o projeto é outro. O projeto é recuperar a partir do ressentir o passado. O passado é o projeto, e não o futuro.”

O debate “A servidão voluntária de volta: por que tantos votam naqueles que vão lhes fazer mal?” está disponível na íntegra no canal da SBPC no YouTube.

Rafael Revadam – Jornal da Ciência

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *