Na noite desta quarta-feira (26) foi realizado o primeiro debate virtual das mais de 60 atividades preparatórias do evento presencial do Fórum Social das Resistências, transferido para o final de abril, devido à pandemia do coronavírus. O evento segue até domingo e a programação completa pode ser acessada no site do FSR.
Organizado pela ADJC – Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania, o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos, Grupo Interdisciplinar de Pesquisas sobre a Guerra Cultural, Fundação Mauricio Grabois, Cebrapaz, Barão do Itararé e Instituto IDhES, o painel Guerra Cultural e Luta Ideológica contou com a mediação do jurista, Deputado Constituinte de 1988 e Coordenador Nacional da ADJC, Aldo Arantes. Participaram como painelistas João Cezar de Castro Rocha, Renata Mielli, Lúcio Flávio de Castro Dias e Mauri Cruz.
Na abertura, Aldo Arantes explicou que a partir da constatação de que a direita, ao assumir a Guerra Cultural, conseguiu obter importantes vitórias no terreno ideológico e político, a AJDC considerou necessário fazer um estudo aprofundado deste fenômeno para contribuir na formulação de um programa e de uma tática de luta ideológica para os setores democráticos e progressistas. “O passo inicial foi convidar alguns professores que, junto com os advogados da ADJC, desenvolveriam as pesquisas. Logo foram ficando claras a complexidade do estudo e a necessidade de incorporar especialistas em diversas áreas do conhecimento. Assim, foi constituído o Grupo Interdisciplinar de Pesquisas com a participação de advogados, professores, psicólogos sociais, hackers, jornalista, neurocientista e especialista em redes sociais”, explicou.
O resultado do estudo foi o livro “Reconstruir a Democracia – União de amplas forças políticas e sociais para a luta ideológica”, dos quais os painelistas são co-autores, com exceção de Mauri Cruz. Os trabalhos se desenvolveram do final de 2020 até maio de 2021.
Aldo Arantes destacou que a derrota eleitoral de Bolsonaro é tarefa decisiva para assegurar a retomada do caminho civilizatório abandonado. “E ela está intimamente ligada à articulação de uma poderosa frente na luta ideológica. As forças democráticas e progressistas, agindo isoladamente, serão insuficientes para reconquistar a hegemonia ideológica junto aos diversos segmentos da sociedade no tempo necessário para influir sobre os resultados das eleições de 2022. É hora de uma ampla união nas frentes política e ideológica das forças democráticas e progressistas e esperamos contribuir com este trabalho que traz diversas propostas.”
Um estudo de caso do Brexit e da campanha de Trump
Autor de um dos capítulos do livro, o membro da Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Lúcio Flávio de Castro Dias apresentou exemplos da Guerra Cultural no mundo, como o caso do Brexit e a campanha de Trump.
“São hoje de conhecimento geral as ‘revoluções coloridas’ e os ditos ‘golpes brandos’ que foram espalhados pelo mundo com essas novas táticas. O que talvez os estrategistas que configuraram esses novos métodos de subversão dos regimes adversários não esperassem é que eles passariam a ser usados internamente, no coração do próprio imperialismo, por facções radicais dissidentes de direita e trariam a desestabilização a seus próprios governos”, destacou.
Lúcio Flávio explicou os métodos utilizados no caso Brexit na Grã-Bretanha, em junho de 2016, e a eleição de Trump nos EUA, em novembro de 2016. “O que esses dois casos têm em comum é a aplicação intensiva dos instrumentos criados para as ‘guerras híbridas’ em territórios para os quais eles não foram desenhados, e a presença, em ambos, do indefectível Steve Bannon, movendo-se nas sombras com desenvoltura e eficácia, no uso das armas forjadas pelo imperialismo para aplicação ao exterior, usando-as agora nas próprias metrópoles, com a finalidade de assegurar a hegemonia política da direita e contra a democracia liberal.”
Segundo o advogado, Steve Bannon, geralmente apontado como inspirador e estrategista dos métodos da extrema-direita usados no Brexit, é uma figura complexa do submundo de direita da política estadunidense. Teve muitas facetas em sua vida. “Segundo a Wikipédia e outras fontes, ele foi ex-fuzileiro naval, ex-banqueiro, ex-analista da financeira Goldman Sachs, ex-produtor de filmes e executivo de mídia, mas só se tornou mais conhecido desde que, a partir de 2012, esteve à frente do Breitbart News, um site de notícias, opinião e comentários de extrema-direita, que ele descreveu, em 2016, como ‘a plataforma da ‘alt-right’ [direita alternativa]”, definida por ele como ‘virulentamente antiestablishment, particularmente ‘anti’ uma classe política permanente”.
Segundo Bannon, a ideologia do Breitbart News era uma mistura que incorporava libertarianos, sionistas, membros conservadores da comunidade gay, opositores do casamento entre pessoas do mesmo sexo, partidários do nacionalismo econômico, populistas de direita e partidários da alt-right, e, embora admitisse que o ideário da alt-right apresentava “conotações raciais e antissemitas”, Bannon afirmava ter tolerância zero a tais ideias.
Lúcio Flávio conta que Benjamin Teitelbaum, que o entrevistou várias vezes, o descreve como pessoa acessível e de trato cordial, inteligente e preparado. Segundo esse autor, Steve Bannon teve uma espécie de “conversão” na juventude. Após ter sido praticante eclético de filosofias alternativas em voga nessa época, como Yôga, Zen-Budismo e hinduísmo, Bannon, em uma estadia no porto de Hong Kong, em sua época de fuzileiro naval, descobriu, em uma incursão solitária e quase clandestina a uma livraria alternativa nessa cidade, um livro de René Guénon, “O homem e seu devir segundo o Vedanta”. Guénon foi um francês convertido em muçulmano, que se tornou o patriarca do Tradicionalismo, também conhecido como “A Filosofia Perene”, e Bannon, estudando escondido no navio este livro (para não parecer “esquisito” aos olhos dos demais marinheiros), convenceu-se da verdade dos ensinamentos de Guénon.
O Tradicionalismo (grafado com maiúscula, para diferenciá-lo do uso comum) de Guénon é uma doutrina de raízes hinduístas misturada com uma corrente mística do sufismo muçulmano. Tem como base a ideia de tempo cíclico hinduísta, que fala em quatro Idades, ou eras, que se repetem infinitamente: a Idade de Ouro, quando o mundo atinge sua perfeição sob a direção espiritual dos sacerdotes (brâmanes); a Idade de Prata, quando o mundo começa a decair, ao assumirem o governo os guerreiros (xatrias); a Idade de Bronze, em que a decadência continua a aumentar, sob a governança dos comerciantes e fazendeiros (vaixias); e, por fim, a Idade do Caos, Kali Yuga, em que o homem comum, as classes mais baixas (sudras), que deveriam servir às três castas superiores anteriormente mencionadas, ao invés disso, assumem o comando da sociedade. O Tradicionalismo acredita que vivemos hoje o Kali Yuga, que identifica com a modernidade (e com a democracia), e que essa Era terminará inevitavelmente em convulsões sociais e catástrofes apocalípticas para a humanidade, que destruirão todo o arcabouço social, mas ao mesmo tempo possibilitarão a reconstrução da nova Idade de Ouro de um novo ciclo, sob a direção perspicaz e rigorosa dos sábios (leia-se: os próprios Tradicionalistas).
“É interessante ressaltar que a visão Tradicionalista original implicava um afastamento dos sábios do mundo e da política, para manter-se incontaminados e, pelo autoconhecimento e práticas místicas, preparar-se para exercer o seu papel pós-apocalíptico. No entanto, com Bannon e sua contraparte russa, Aleksandr Dugin, os Tradicionalistas, que já vinham fazendo incursões algo desajeitadas pela política, capitaneados pelo discípulo de Guénon, Julius Évora, que influenciou Mussolini, agora resolveram participar diretamente da ação política, com vistas a acelerar o fim do ciclo, do Kali Yuga. Aleksandr Dugin é, supostamente, o conselheiro informal de Putin, e Bannon estava ansioso para emulá-lo nos EUA, e encontrou a oportunidade ao aproximar-se de Trump em sua campanha presidencial”, explica Lúcio Flávio.
Bannon também influenciou na campanha eleitoral de Jair Bolsonaro no Brasil, utilizando as mesmas táticas com milhares de robôs e dados obtidos pelas redes sociais para ter o perfil psicológico dos eleitores.
“Guerra cultural é uma máquina de narrativas polarizadoras”
O professor de Literatura Comparada da Universidade do Rio de Janeiro, doutor pela Universidade de Stanford (EUA) e autor do livro Guerra Cultural e Retórica do Ódio (crônicas de um Brasil pós-político), João Cezar de Castro Rocha, foi bastante enfático no perigo que representa essa guerra cultural da extrema-direita.
“Se não abrirmos os olhos para a centralidade da guerra cultural no governo Bolsonaro, dificilmente será possível desenvolver um plano de ação capaz de fazer frente à poderosa midiosfera bolsonarista, isto é, o sistema de comunicação que dá sustentação ao projeto político autoritário, cuja ponta de lança é precisamente a guerra cultural.”
Segundo ele, não seria exagero afirmar que a midiosfera bolsonarista é um fenômeno inédito na vida política e cultural brasileira. “Ou levamos muito a sério seu alcance ou não saberemos dimensionar o efeito grave de criação de uma autêntica realidade paralela que, pela primeira vez, tornou-se um ator político relevante, talvez mesmo decisivo, na vida nacional.”
João Cezar afirma que o tripé fundamental que alimenta a mentalidade desses grupos é constituído pelo discurso revanchista e revisionista sobre o golpe de 1964, que formou o projeto Orvil, o Livro Secreto do Exército; a Doutrina de Segurança Nacional, que traz a ideia do inimigo interno que deve ser eliminado; e a popularização do que ele chama de retórica do ódio, promovida pelo escritor Olavo de Carvalho.
Para o professor, a guerra cultural conhece atualmente uma inflexão nova e extremamente perigosa: não se trata mais de “limitar-se” a disputar narrativas no período eleitoral. Pelo contrário, a guerra cultural converte-se uma forma de vida! “Além de disputar narrativas, é preciso tomar overdoses de ivermectina como se não houvesse amanhã, tampouco sistema hepático; é necessário venerar a cloroquina como se fosse uma hóstia profana; por fim, aglomerar, claro, sem máscara, é condição imprescindível para qualificar-se como fiel bolsonarista. E não se esqueça: é obrigatório ignorar a “Globo-lixo”, a “CNN-lixo” e toda a “extrema-imprensa”, de modo a “informar-se” exclusivamente na própria midiosfera bolsonarista que, aliás, produz conteúdo sem trégua.”
Ele afirma que nunca enfrentamos algo similar na cultura brasileira. “Eis a dimensão exata do desafio que nos aguarda em 2022.” E defende que no plano individual, nada importa mais do que substituir a retórica do ódio pela ética do diálogo. “A retórica do ódio suprime autoritariamente as mediações, a fim de legitimar a eliminação do outro, sempre visto como inimigo. Atualização surpreendente dos aspectos mais sombrios da Doutrina de Segurança Nacional, ela possibilitou a emergência do bolsolavismo, sistema de crenças que encontrou na dissonância cognitiva sua respiração artificial. O resultado não poderia ser senão o analfabetismo ideológico que domina o cenário mental brasileiro na era pós-política bolsonarista.”
O professor alertou para a campanha anticomunismo que já começou. Segundo ele, a produtora Brasil Paralelo está editando o seu documentário com mais visualizações “1964 – O Brasil entre armas e livros” em pequenos vídeos de 5 minutos que estão tendo milhares de acessos. “Na sua campanha, Bolsonaro reconhecerá todos seus limites e falhas, mas colocará como oposição a ele o comunismo, representado pela ideologia de gênero, o marxismo cultural e a destruição da família. A partir de fevereiro será esse o norte da sua campanha. Estes são os sinais já dados por matéria da Folha Universal, os vídeos do Brasil Paralelo e a linha editorial da Record e Igreja Universal.” Na opinião de João Cezar, voltamos ao Brasil do IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) e do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) – articulações conspiratórias civis anteriores ao Golpe Civil-Militar de 1964. “Só que hoje o novo meio de comunicação é o digital que está criando uma realidade paralela. Precisamos encontrar uma linguagem serena e objetiva que demonstre o fracasso dos governos de extrema-direita.”
Para ele, a opção é exercitar a ética do diálogo, que não vê o outro como um inimigo, porém um outro eu, cuja diferença enriquece minha vida, ao ampliar meu horizonte. “Je est un autre, anunciou Rimbaud: ‘Eu é um outro’. O poeta não escreveu ‘Je suis un autre’ — ‘Eu sou um outro’. A agramaticalidade da frase é o que mais importa, sinalizando a abertura ao outro, a escuta atenta de quem pensa de forma diversa da nossa. Somente assim superaremos o bolsonarismo. Nunca se esqueça: o bolsonarismo antecedeu e certamente sucederá ao Messias Bolsonaro.”
Os algoritmos a serviço da guerra cultural
As plataformas de redes sociais, uso de dados pessoais e os algoritmos a serviço da guerra cultural é o tema do capítulo do livro escrito por Renata Mielli e Leandro L. Loguercio.
Jornalista, estudante do Programa de Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (PPGCOM-ECA/USP) e secretária-geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Renata Mielli falou sobre o papel das plataformas das redes sociais na dinâmica de circulação de conteúdos e como impacta nas emoções das pessoas.
Segundo ela, nas plataformas digitais monopolistas (Google, Facebook, Twitter, YouTube, Instagram), o fluxo de circulação da informação é orientado por uma arquitetura específica de funcionamento das redes que lança mão de algoritmos e Inteligência Artificial (AI) estruturados e organizados para o aprendizado de máquina. “Com este, é possível às plataformas estabelecerem uma disputa eficaz por atenção e com a finalidade de incrementar o tempo de tela de cada um dos usuários individuais.”
Renata explica que a sugestão de conteúdos e interações ocorrem a partir das preferências e hábitos de navegação dos usuários; neste contexto, modelos matemáticos representando cada indivíduo são constantemente submetidos a simulações em ambiente computacional de altíssima performance, cujo processamento tem elevado grau de eficiência nos propósitos de gerar mudança de comportamento. “Contudo, a partir desses padrões individuais de uso das redes e do direcionamento personalizado de conteúdo resultante, o que aparentemente seria um serviço desenhado para satisfação personalizada dos usuários transformou-se em uma realidade distópica de tal forma que as pessoas estão principalmente se aproximando de outras que compartilham dos mesmos valores e ideias (muitas delas, inclusive, compondo um conjunto de falsidades sem conteúdo fático, que estabelecem construções mentais em um universo paralelo extremamente perigoso). Isso produz, como consequência, um cenário extremamente fragmentado em que já não existe mais debate, contraposição de opiniões, em que não se produzem sínteses e buscas de consensos sociais a partir das diferenças e dos fatos. Formou-se, assim, um ambiente que incentivou e estabeleceu a polarização da sociedade, na qual prevalece a retórica do ódio como amálgama de grupos afins.”
Ela ressaltou que essas plataformas de redes sociais são empresas monopolistas, sediadas nos Estados Unidos, e que, como entidades capitalistas privadas, não possuem nenhum compromisso com a democracia – muito menos com a democracia nos países em que elas prestam seus serviços, praticamente sem nenhuma restrição legal, sem regras e, inclusive, sem pagar nenhum tipo de imposto ou dividendo pelas suas operações. “O sistema de dados e seu processamento algorítmico estão hoje, nessa nova fase da internet, nas mãos de quem possui poder econômico para pagar pela coleta, organização e análise de um montante inimaginável de dados, cujo processamento depende de robustos data centers que utilizam milhares de servidores conectados para possibilitar altíssima performance computacional (conhecido como high throughput processing).”
Desse modo, continua Renata, os clientes das big techs são esses compradores, e o produto adquirido são os perfis de usuários com seus padrões específicos de interesse. “Ou seja, o produto desse mercado são nosso padrão de comportamento e suas mudanças direcionadas. Essas novas dinâmicas de circulação dos conteúdos, nessas plataformas mediadas por algoritmos, amplificaram a circulação de mensagens de forte apelo emocional, com o objetivo de explorar medos, angústias, aversões, dúvidas, ódio, reforçando conceitos prévios e que impactam nos processos de tomada de decisão das pessoas. Esse cenário está beneficiando forças de ultradireita nacionalistas, de viés fascista e autoritário, reforçando movimentos que questionam políticas públicas adotadas com base em pesquisas científicas (contestação da pandemia do coronavírus, movimento antivacina etc.), entre outros movimentos negacionistas e de segregação que ganharam força nos últimos anos.”
É neste ambiente, explica, que se estruturam as narrativas e a ofensiva da extrema-direita para desenvolver o que tem se chamado de guerra cultural, explorando as emoções para construir ou destruir líderes opositores ou antagônicos ao seu projeto de poder.
Neste sentido, Renata pontuou algumas iniciativas que considera urgentes.
1 – Discutir e estabelecer políticas de regulação para as plataformas privadas da internet, não apenas em seu aspecto econômico – combatendo seu caráter de monopólio –, mas também para seus modelos de funcionamento, para impor mais transparência e mecanismos de prestação de contas à sociedade (accountability); 2 – Discutir e estabelecer mecanismos para construir processos democráticos e passíveis de escrutínio público dos algoritmos das redes sociais. “Precisamos amplificar a discussão sobre como garantir a privacidade e parâmetros não discriminatórios e de garantia de direitos humanos desde a programação dos algoritmos (privacy by design, human rights by design).” 3 – Aprofundar as políticas de proteção de dados pessoais para criar regras mais rígidas para o uso de dados – em particular o relacionado ao debate público e a processos políticos. 4 – Aprofundar a discussão sobre os limites para a liberdade de expressão, a partir de um amplo diálogo público que defina parâmetros democráticos para impedir o abuso desse direito e o uso de discurso de ódio para intoxicar a esfera pública de debates.
Segundo a jornalista, no Brasil foram dados alguns passos, mesmo que pequenos com a apresentação do PL 2630 na Câmara pelo deputado Orlando Silva, que busca regulamentar as plataformas.
Consciência crítica como postura de vida
Mauri Cruz, advogado socioambiental, professor de pós graduação em direito à cidade e mobilidade urbana, diretor do Instituto IDhES, do Camp – Escola de Cidadania, membro da Diretoria Executiva da Abong e do Conselho Internacional do FSM, foi o último painelista da noite. Como um dos principais articuladores do Fórum Social das Resistências saudou à iniciativa das entidades organizadoras e lembrou que se não fosse a situação pandêmica estariam realizando a Marcha de Abertura do FSR.
Também lembrou que o objetivo deste momento virtual é identificar pontos de consensos, prioridades coletivas e a construção de uma Agenda Comum de Lutas para o próximo período rumo aos momentos presenciais do FSResistências2022 que serão realizados de 26 a 30 de abril de 2022 em Porto Alegre.
Mauri defendeu que a consciência crítica deve ser uma postura de vida. “Não podemos fazer uma militância com raiva da realidade. Não temos que ter raiva, mas entender a realidade para transformá-la. Dialogar com a realidade.” E pontuou algumas tarefas que considera fundamentais: postura de escuta e compreensão para transformar a sociedade tendo consciência das contradições que estão no centro de mudança duradoura.
Manifesto “Guerra Cultural: Alerta ao Povo Brasileiro”
Por fim, Aldo Arantes convidou o professor João Cezar de Castro Rocha a ler o manifesto da AJDC que será apresentado na Assembleia final do FSR e que também pretendem levar para o debate no FSR presencial e o Fórum Social Mundial no México.
Um espectro ronda as democracias na era digital: o espectro da guerra cultural da extrema-direita. O avanço transnacional da extrema-direita é incompreensível sem o seu êxito na guerra cultural. Como explicar que centenas de milhões de pessoas em todo o mundo tenham votado em candidatos extremistas?
A guerra cultural impõe uma visão negacionista da ciência e da história, criando através das fake news uma realidade paralela. Lança mão em todo o mundo do Lawfare (perseguição jurídica a adversários) para desestabilizar governos e lideranças democráticas e progressistas.
A guerra cultural toma como base ideias reacionárias sobre a família e a nação. Manipula o sentimento religioso de milhões de fiéis e adota um falso e anacrônico anticomunismo – para a extrema-direita, comunistas são todos aqueles que defendem os direitos sociais e a democráticos. No Brasil também se utilizou, farisaicamente, da luta contra a corrupção.
A guerra cultural se apropriou das mais avançadas técnicas de comunicação, utilizando especialistas nas mais diversas áreas do conhecimento, entre os quais cientistas políticos, psicólogos sociais, neurocientistas e especialistas em redes sociais. Obtiveram polpudos recursos para suas campanhas.
O êxito da guerra cultural é indissociável da lógica própria do universo digital. Desvendar essa afinidade estrutural é o primeiro passo para superar extremismos de direita – como o bolsonarismo.
A linguagem algorítmica, gramática do universo digital, opera por exclusão binária: sim X não. A visão do mundo da extrema-direita é excludente, binária, opera pela eliminação de tudo e de todos que se colocam contra suas propostas.
A extrema-direita levou para a política os métodos de vendas comerciais, utilizando algoritmos para identificar tendências e desejos: a cidadania reduzida ao consumo. Desse modo, transformou a política numa modalidade de comércio digital: a monetização da política é um dos segredos de seu sucesso.
A economia da atenção determina o caráter radicalizado da linguagem do universo digital: a radicalização é uma forma de se destacar em meio à vertiginosa e ininterrupta oferta de conteúdo.
Daí a pregação do ódio, da violência e das mentiras. Teorias conspiratórias têm mais apoios nas redes socais do que verdades, pois fortalecem preconceitos e vieses cognitivos já existentes. A polarização acéfala e a radicalização bélica constituem a linguagem da extrema-direita e daí seu êxito meteórico na era do universo social e das redes sociais.
O universo digital cria perfis a partir das primeiras interações aleatórias dos usuários, propiciando o surgimento de bolhas impermeáveis à diferença e mesmo à realidade. Ora, a forma mesma da guerra cultural da extrema-direita é a criação de narrativas polarizadoras, com base em notícias falsas e teorias conspiratórias. A finalidade é a invenção de inimigos em série, mantendo as massas digitais em mobilização permanente.
A Guerra Cultural visa romper com importantes conquistas econômicas e sociais. Afronta a democracia. Ataca os direitos humanos e agride os trabalhadores, mulheres, negros e a comunidade LGBTQIA+. Volta-se contra todos que se opõem aos seus objetivos.
Por isto, o espectro tornou-se uma ameaça de carne e osso (e muitos dólares): a extrema-direita vence eleições livres e democráticas em diversas partes do mundo graças ao engajamento produzido pela radicalização da guerra cultural.
O que fazer? (Já se disse que uma boa pergunta é metade da resposta.)
Em primeiro lugar, reconhecer a centralidade da guerra cultural no avanço transnacional da extrema-direita – também no Brasil.
Reconhecer a importância decisiva de combinar luta política e luta ideológica, pois a tarefa primordial é despertar a consciência crítica da sociedade com bases nos dados objetivos da realidade.
Reconhecer a centralidade do universo digital na ação política contemporânea.
Reconhecer que o universo digital multiplicou a noção de espaço público; hoje, há diversos, com linguagens e dinâmicas particulares. Ocupar esses novos espaços públicos é tarefa urgente.
Identificar o paradoxo que pode levar a guerra cultural à derrota. Quanto mais exitosa a guerra cultural na produção de narrativas polarizadoras, tanto mais desastrosa a administração pública, em função da incapacidade de lidar com dados objetivos.
O paradoxo pode ser traduzido em linguagem direta: basta a descrição do fracasso incontestável de um governo baseado na guerra cultural. Por exemplo, a desastrosa condução na pandemia de Covid dos governos extremistas de direita de Trump e Bolsonaro. Nos EUA e no Brasil, o negacionismo criminoso da ciência levou a um morticínio generalizado.
Despertar a urgência da questão da luta ideológica tendo em vista as eleições de 2022. Daí o alerta deste Manifesto, a fim de unir amplas forças na luta política e ideológica!
A tarefa das forças progressistas é realizar a luta ideológica que tem como pressuposto a inclusão democrática de todos os segmentos da sociedade, lançando mão da ética do diálogo para retomar o debate público com base em dados objetivos.
Partindo da constatação de que a extrema-direita dispõe de uma articulada rede de comunicação social, formando uma poderosa midiosfera extremista, é fundamental que as forças democráticas e progressistas se unam para construir uma rede alternativa para o esclarecimento da sociedade.
Para transformar o mundo distópico da guerra cultural da extrema-direita é preciso interpretá-la corretamente, para que o projeto da Nação-Brasil finalmente se torne realidade.
Anexo: Primeiro debate virtual das atividades preparatórias do evento presencial do Fórum Social das Resistências debate a guerra cultural – Reprodução