A convivência da arte com os opostos — riqueza e miséria — é parte de sua própria história. Sempre transitou entre esses extremos e alguns pensariam que isso mostra que a faz parte do lastro ou garantia de nossa humanidade. Outros dizem que é garantia de valores e altas somas de dinheiro.
Ao lermos os diários de Michelangelo Buonarroti (1475-1564), vemos que grande tempo de sua lida na vida era ir atrás do mármore perfeito para uma obra planejada. Isso porque não poderia, em sua concepção, haver remendos, como era comum em seus contemporâneos menos afortunados.
Tudo iria abaixo se um grande e magnífico MOISÉS (Figura 1, c. 1513-1515) terminasse sem um dedinho do pé, por faltar um pedaço de pedra.
O mestre concebia, como parte da maestria, ter o mármore adequado, como se ele, o mármore, tivesse inscrito em si próprio a escultura e faltasse ao artista aparar os excessos.
Acontece que o nosso mestre escultor tinha o que muitos de seus colegas não tinham, além do talento, é claro: verbas de seus mantenedores ou mecenas, a família Médici, de Florença e até mesmo verbas oficiais, para viajar, pesquisar, adquirir e transportar grandes blocos, na execução de obras pré aprovadas.
Em algumas cartas solicitava assalariamento de trabalhadores, em outras verbas de manutenção e sobrevivência… Muito correto para um artista, magnífico para o reconhecimento profissional. Suas obras, afinal, são admiradas até hoje, por gente de todo o mundo, alguns lugares com exposições gratuitas e com ambiente acessível.
Ora, diríamos, isso tudo é arte.
Já seu colega de quase quinhentos anos depois, Vincent Van Gogh (1853-1890) não teve o mesmo apoio. Vendeu uma única obra em vida — A VINHA ENCARNADA (figura 2, 1888) — por algo em torno de US$50. Residiu em um manicômio e o autorretrato do seu quartinho guarda essa mesma ambiguidade que vemos entre riqueza e pobreza: um quarto mágico e que para sempre habitará nossos sonhos, mas um grito claustrofóbico que se distorce, como o próprio som do grito, em curvas e ondas que dão ao aposento uma estranha sensação de acolhimento insólito.
Willys de Castro (1926-1988), foi um bem sucedido artista visual que fez da arte o seu trabalho cotidiano, laboral, sistemático e criativo: era químico e, além de experiências pictóricas, foi um dos pioneiros no design gráfico contemporâneo, experimentações com figurinos e tinturas para teatro, no TBC, Teatro Brasileiro de Comédia. Era respeitado pela coerência e pela multiplicidade de participações, e transitou muito bem entre os concretistas e os neoconcretistas.
Perto da porta da magnífica sala de exposições na Pinacoteca de São Paulo, onde estavam expostas suas obras, entre elas a PINTURA 194 (Figura 3, 1957), podíamos ver alguns moradores de rua, ou mendigos. Claro, eram como que apagados pela arquitetura que separa a Pinacoteca do Parque da Luz e quem procurasse observar teria que contornar a esquina para ver um ambiente diferente.
O Parque, sua arquitetura e jardins, as obras ao ar livre, pontes e espelhos d’água, a maciez do seu ambiente acalorado pelas mesas de baralho e dominó, alguns músicos, esporádicas peças de teatro e encontros, convivem com um tipo de riqueza e pobreza que contrasta e, de certa forma, dá uma substância diferente quando dizemos: arte.
Costuma-se supor que aquela multidão de pessoas, que dava tanta vida por ali, poderia compartilhar, com linhas de gratuidade e apoio, a arte culta da Pinacoteca. Mas não se costuma supor vida humana por ali, apenas massa exposta à discriminação, mas altamente lucrativa quando explorada em sua força de trabalho. Muito menos arte e cultura supõe por ali um certo cinismo cultural assistencialista que deve ser combatido.
A manutenção dessa brutalidade de corpos e pobreza parece, entretanto, ser a garantia da construção das coisas e a produção do valor. Onde houver a pobreza como lastro de valor e força de trabalho, sempre haverá um banqueiro, um magnata, industrial ou fazendeiro.
É a exploração do trabalho e da miséria que garante uma acumulação extraordinária de recursos que faz do mercado da arte um dos mais milionários e exclusivos negócios, onde nunca se sabe ao certo de onde vem e para onde vão vultuosas e inacreditáveis quantias, o que o torna tão atraente para a lavagem de dinheiro e para liquidação de massas falidas.
Recentemente obras de arte bateram recordes em valores de mercado. Leilões animaram as noites paulistanas enquanto circulavam de mãos milhões e milhões de Reais. Por exemplo CAIPIRINHA (Figura 4, 1923) de Tarcila do Amaral (1886-1973), que foi arrematada por R$ 57,5 milhões. Ou a massa falida do Banco Santos, que leiloou obras que estavam em exposição no MAC, Museu de Arte Contemporânea da USP, como publicado na Ciranda.
As badaladas exposições não são produtos de curadores, ou mostras temáticas ou curatoriais relevantes. Ocorre que a arte, além de sua beleza e sublimidade, frequenta também as páginas policiais, de buscas e apreensões, leilões de massas falidas.
Nos deparamos com um inusitado encontro entre a nata da produção artística e a enumeração da nata dos banqueiros, agiotas, picaretas ou criminosos do colarinho branco nisso que quase se tornou um MUSEU VIRTUAL DOS LEILÕES.
Um estranho e sem dúvida muito contemporâneo projeto curatorial!
Uma das formas mais antigas e conhecidas de lavagem de dinheiro é o mercado de arte, assim como um dos mais mesquinhos mercados de espólios de guerra, epidemias ou tragédias.
Alguns pensariam que a arte, por estar entre a riqueza e a miséria, mostra que faz parte da garantia de nossa humanidade.
Pode ser que seja verdade.
Mas é também um dos grandes instrumentos de constrangimento, controle, submissão, preconceito, discriminação e suposição de todo um corpo e carne humana — a miséria — como objeto de sua retratação, tanto quanto retrata mulheres objetos e negros submetidos ou escravizados.
A arte e a ideologia caminham juntas. A arte e a miséria se complementam.
E porque artistas, mesmo no lado de lá da miséria, continuam artistas?
O que move artistas e também a humanidade a reconhecer arte na arte?
O que leva homens e mulheres a valorizar um quadro que custa milhões e desvalorizar uma vida que escorre pela calçada?
Porque fazemos arte, afinal?
A arte pode não ser, afinal, como imaginam alguns, a ostentação da plenitude.
Pode ser a expressão de uma falta profunda que se sente ao olhar o mundo e, não encontrando nenhuma outra forma de expressar esse imenso abismo, precipita-se na vertigem do ato criativo, que se mostra tão potente que não imaginamos mais ser possível uma humanidade desprovida de arte!
OBRAS
FIGURA 1 – MICHELANGELO DI LODOVICO BUONARROTI SIMONI (1475-1564). Moisés (Mosè). Escultura de Mármore, c.1513-1515, Basílica de São Pedro Acorrentado, Roma. Foto WikipediaArtes.
FIGURA 2 – VAN GOGH (1853-1890). A vinha encarnada (Neerlandês: Die Rooi Wingerd), 1888. Óleo sobre tela, 75X93cm, Museo Pushkin de Belas Artes, Moscou. Imagens de WikipediaArtes.
FIGURA 3 – WILLYS DE CASTRO (1926-1988). Pintura 194, 1957. Óleo sobre aglomerado. Doação de Hércules Barsotti, 1995. Pinacoteca, Galeria José e Paulina Nemirovsky – Arte Moderna. Foto de Antonio Herci.
FIGURA 4 – TARSILA DO AMARAL (1886-1973). Caipirinha, óleo sobre tela, 60X81cm, 1923. Arrematada por R$ 57,5 milhões. Inferior do que o seu recorde com a tela A LUA (1928), vendida para o MAM de Nova York por US$ 20 milhões (R$ 100 milhões). Foto de divulgação.