O que esperamos ver, quando olhamos para a arte?

O que esperamos ver, quando olhamos para a arte?

Nossas expectativas vêm dos hábitos e gostos que adquirimos em nosso modo de vida, ou é a arte que nos dá, através de suas qualidades essenciais, expectativas quanto ao que devemos procurar e observar?

Quando procuramos algo em um objeto que chamamos de “arte”, estamos atrás de qualidades que o configurem como arte, ou, chamando o objeto de “arte”, estamos reconhecendo para a arte as qualidades que vemos naquele objeto, numa eterna atualização do conceito de arte?

Por exemplo, podemos olhar para uma imagem pintada e constatar: isso é uma obra de arte, pois é magnificamente pintada. Ou podemos ir a uma exposição de quadros e procurar, nas telas ali expostas, as que são magnificamente pintadas. Ou podemos observar, na mesma exposição, algo que olhamos e pensamos: “por que isso está aqui? Isso não é arte!”.

É possível encontrar arte fora do lugar reservado para se procurar arte?

Essas questões nos colocam no centro da discussão trazida pelas vanguardas do século XX, sobre a existência ou não de essências ou definições para a arte, ou seja, a existência de uma aura própria que a configuraria como atividade especial no mundo. O papel da novidade, originalidade e ruptura têm sido exaltados como qualidades das obras desse período, com relação às técnicas e estilos mais antigos.
No gosto, moda e na estética, parece haver uma espécie de movimento do PRÓ-AO-CONTRA, e determinados valores e fundamentos de um período primeiro surgem revolucionários, depois pouco a pouco desenvolvem-se com maestria, estabilizam-se e fortalecem a pedagogia e a institucionalização da estética. Por fim, cansando ou esgotando sua expressividade, abrem em sua contemporaneidade algo insurgente, com outros valores, outros modelos e outras técnicas: um novo olhar artístico sobre o mundo.

Uma das mais notáveis formas dessa gangorra do pró-ao-contra é a oscilação entre a arte FIGURATIVA e a arte ABSTRATA. As vanguardas trouxeram com elas uma vertente que se mostrará muito fecunda: o movimento para a abstração e para a abstração geométrica, numa guinada da tradição meticulosamente figurativa que dominava o gosto.

De forma genérica, a arte figurativa tem referências explícitas no mundo real, com relação à sua figura, suas cores, suas formas e retratação de sua profundidade ou planificação. É uma arte, portanto, que imita a natureza em sua imagem e que requer de quem observa uma identificação imagética própria a essa concepção de mimese e reconhecimento do mundo.

A forma abstrata, por outro lado, estabelece referências entre elementos que compõe o logos ou o pensamento sobre o mundo, e busca referências em sua própria semântica: seus processos, modelos e padrões de ocorrência como formas discursivas concretas. Por exemplo, um quadrado preto, antes de querer representar algo no mundo, no qual se assemelha por imagem, é um “quadrado preto” no mundo, em uma forma construtiva de se apresentar, emoldurado sobre um fundo branco.

O QUADRADO PRETO SOBRE FUNDO BRANCO (Figura 1) de Kazimir Malevicht é uma das mais expressivas e primevas obras dessa radicalidade rumo à abstração geométrica, através da estética que chamou de “suprematista”.

A obra cumpre objetiva e construtivamente o seu título auto explicativo: estamos diante de um quadrado preto, que está emoldurado sobre um fundo branco. Segundo o autor, entretanto, cumpre a função de abrir o horizonte do pensamento para além da moldura, ao continuar até o infinito as laterais ou perspectivas da face que temos à nossa vista. Através de um universo de recursos bem escasso: formas geométricas básicas, linha, ponto e cruz.

O título é apresentado como parte importante da obra, complementando seu pensamento e alinhando a obviedade de uma legenda que diz “quadrado negro sobre fundo branco” a uma afirmação estética e mesmo existencial, sob forma de um quase manifesto: “QUADRADO SUPREMATISTA”.

Na obra BRANCO / PRETO, de Hércules Barsotti (Figura 2), o mesmo preto, agora borda, dá também uma inesperada profundidade na tela, ao destacar e descolar um plano branco levemente inclinado sobre fundo preto. O resultado é, como no caso de Malevicht, é a conquista da profundidade para além dos padrões estabelecidos de ponto de fuga ou tridimensionalidade figurativa. A pintura remete a ela mesma e procuramos intrinsecamente observar seu movimento interno e concretude abstrata, sua própria linguagem, e não um objeto real que esteja a representar ou figurar do mundo.

Já PRETO SOBRE PRETO, de Thiago Miazzo, dá uma nova perspectiva de profundidade, como objeto físico e capa de um álbum: um real objeto preto no mundo, mas que é a face de uma imagem preta com moldura preta, ou fundo preto. No meio virtual, destaca-se como uma janela que se projeta na profundidade, como analogia de um portal para a vertigem musical dos compositores J-P Caron & Rafael Sarpa, como se bastasse fechar os olhos para entrar por ele e aproveitar a completude sonora na escuridão, engenhosamente construída sobre filtros e manipulação de ruído branco.

Cem anos separam a primeira da última obra, de um mesmo veio abstrato e geométrico e, separadas no tempo, cada sensível originalidade, presenças marcantes e estéticas revigoradas em suas contemporaneidades.

Se as qualidades de uma tela figurativa passam pelo seu realismo, emprego de suas cores, capacidade de propiciar uma ilusão mais ou menos próxima do real; uma tela abstrata apresenta outras formas, qualidades estéticas e chaves de interpretação que passam por um “sentir da mente”, onde reconhecemos padrões, planos ou processos.

Como imitação das imagens ou como imitação dos processos, a arte pode portar a figura e o pensamento do mundo e, ora mais para a figuração, ora mais para a abstração, revela aspectos de um entendimento estético que é ao mesmo tempo autorreconhecimento e afirmação de humanidade como um caminho de descoberta expressiva.

OBRAS

FIGURA 1 – MALEVICH, Kazimir (1879-1935). Quadrado Preto sobre fundo branco ou Quadrado Preto Suprematista, 1915.Óleo sobre tela. Galeria Tretyakov, Moscou.

FIGURA 2 – BARSOTTI, Hércules (1914-2010). Branco / Preto, 1986.Óleo sobre tela. Doação Willys de Castro. MAC, Museu de Arte Contemporânea da USP, São Paulo.

FIGURA 3 – MIAZZO, Thiago. Preto sobre preto, 2013. Capa para CD-Áudio. Impressão e imagem digital.

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