Já em 2018, a ex-Diretora Geral do FMI Christine Lagarde declarou que “os níveis da dívida estão nas alturas nos países avançados, emergentes e de baixa renda… a dívida global, tanto pública quanto privada, está agora em um máximo histórico de 182 trilhões de dólares, quase 60% maior do que em 2007… os países emergentes e em desenvolvimento já estão sentindo os primeiros efeitos ».
Dois anos depois, sob o impacto da brutal desaceleração de uma economia mundial tão doente quanto frágil, a situação atingiu níveis sem precedentes. Nos países do Norte, o nível global da dívida pública ultrapassou 120% do PIB. No Sul, mais de um país em cada cinco está sobreendividado e quase 15% estão em inadimplência parcial ou total. Segundo a OIT, quase 300 milhões de empregos formais foram destruídos no espaço de poucos meses nessas regiões. Segundo o Banco Mundial, até o final de 2020, como resultado direto da Covid-19, a pobreza extrema afetará entre 88 e 115 milhões de pessoas a mais e mergulhará cerca de 270 milhões de pessoas a mais em uma situação de insegurança alimentar aguda.
Apesar da urgência da situação, dos pedidos de ajuda vindos das populações ou de certos chefes de Estado, das mobilizações coordenadas por organizações da sociedade civil, os grandes discursos das IFIs e das instituições internacionais ficaram sem efeito. As medidas tomadas na primavera e no outono pelo FMI, pelo Banco Mundial e pelo G20 podem ser resumidas, mais uma vez, da seguinte forma: «too little, too late». «Too little/muito pouco», em termos do número de países envolvidos (apenas 50% dos PEDs), sem qualquer cancelamento da dívida e sem qualquer esforço por parte dos credores privados; e «too late/tarde demais» para a maioria dos países envolvidos as medidas anunciadas em abril só foram aplicadas a partir de agosto/setembro. Como resultado, a Zâmbia tem tudo para ser somente a primeira de uma longa lista de países a declarar a cessação dos pagamentos nas próximas semanas.
Quase quatro décadas após o início da última grande crise da dívida do Terceiro Mundo, estamos caminhando para uma nova catástrofe humanitária. As IFIs e as instituições internacionais não querem abandonar as políticas que levaram a esta situação extremamente grave. Pior ainda, o FMI como sempre, está condicionando sua intervenção à aplicação de planos de ajuste estrutural, conforme sua história de ação antissocial, pró-neoliberal. Apesar de seu impacto prejudicial sobre as condições de vida de 85% da população mundial, os 3 trilhões de US$ da dívida pública externa dos países do Sul pesam muito pouco em comparação com os 5 trilhões de US$ liberados somente nos Estados Unidos e na Europa, e em comparação com o conjunto da dívida mundial. Em suma, com vontade política, o cancelamento total da dívida dos países em desenvolvimento é possível.
Como os credores oficiais e privados não estão dispostos a agir em nome do interesse geral, conclamamos os países do Sul a exercerem seus direitos e suspenderem o pagamento da dívida invocando 3 argumentos extremamente legítimos neste momento: a «mudança fundamental das circunstâncias» desde o início da pandemia global, o «estado de necessidade» diante de indispensáveis gastos sociais e de saúde adicionais em um contexto de crise econômica, e a «força maior» dado a situação de sobreendividamento em que se encontram. Para se proteger das represálias já anunciadas pelos credores privados, chamamos os países do Sul a formar uma frente unida contra o pagamento e pelo repúdio dessas dívidas ilegítimas.
Além disso, a pandemia de Coronavírus está castigando uma proporção cada vez maior da população, e as medidas de confinamento estão agravando o desemprego, a diminuição da renda, a precariedade e o aumento dos preços dos produtos alimentícios e serviços básicos. As demissões em massa de funcionários e a falência de microprojetos e outras pequenas atividades de subsistência estão se generalizando. A maioria dos lares populares estão enfrentando grandes dificuldades para satisfazer suas necessidades básicas diárias, pois gastam mais para se proteger da Covid-19 diante do sistema de saúde pública desmantelado por décadas de políticas liberais em favor do setor privado desde 1980. Hoje, centenas de milhões de pessoas das classes populares sobreendividadas, muitas das quais são mulheres, não conseguem pagar seus empréstimos e suportar as taxas de juros muito altas impostas pelas instituições de microfinanciamento (microcrédito), bem como pelas instituições de crédito ao consumidor e bancos. Este sobreendividamento também diz respeito aos camponeses e agricultores forçados a realizar uma exploração intensiva e destrutiva através de investimentos maciços em máquinas e insumos fósseis; principalmente mulheres que ficaram sem condição de reembolsar os microcréditos; inquilinos incapazes de pagar por moradias supervalorizadas por pura especulação imobiliária; estudantes cujo futuro profissional e pessoal é sacrificado a fim de pagar empréstimos contrários aos direitos humanos; ou todos e todas que são forçados a recorrer ao crédito ao consumidor para atender às necessidades básicas em um contexto de neoliberalização cada vez mais agressivo que beneficia apenas os mais ricos.
As tragédias sociais vividas por grandes setores populares, resultantes do endividamento bancário, enquanto uma minoria de especuladores do setor financeiro se enriquece, tornam essas dívidas privadas ilegítimas. Tais dívidas também são ilegítimas por causa de vícios contratuais.
Apelamos para a mobilização cidadã e social (indivíduos, associações, organizações, movimentos autônomos, redes…) para investigar as diversas formas de saques e abusos cometidos pelas instituições de microcrédito, pelas instituições de crédito ao consumo e pelos bancos contra suas vítimas, e para examinar os fundamentos ilegítimos e ilegais que exigem o cancelamento das dívidas privadas dos famílias pobres.
Esta mobilização necessária para o cancelamento das dívidas privadas ilegítimas será um componente de um movimento global para o cancelamento de dívidas públicas ilegítimas.