Ano de 1990. Eu era vereadora, e Luiza Erundina, prefeita da cidade de São Paulo, pelo PT.
Em 11 de setembro daquele ano, a prefeita tornou pública a existência de uma vala clandestina no cemitério Dom Bosco, em Perus. Nesta vala foram encontradas 1.049 ossadas ensacadas individualmente e sem identidade.
Em 5 de outubro, após uma série de indagações sem respostas sobre a existência da vala, os vereadores da Câmara Municipal de São Paulo decidiram criar uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) “com o objetivo de apurar a origem e as responsabilidades quanto às ossadas encontradas no cemitério Dom Bosco, em Perus, e investigar os demais cemitérios de São Paulo”. Os membros da comissão eram Julio Cesar Caligiuri Filho, que presidiu os trabalhos (PDT), Ítalo Cardoso (PT), Vital Nolasco (PC do B) e Tereza Lajolo, a relatora.
Depois de 6 meses de trabalho, com a busca e a análise de elementos documentais e a oitiva de pessoas que pudessem nos dar explicações, fomos montando o quebra-cabeças que nos permitiu desvendar o surgimento e o uso daquela vala, estabelecer sua ligação com as vítimas da Ditadura Militar e discutir o destino dado aos cadáveres de indigentes na cidade de São Paulo, um problema que se arrasta até os dias atuais.
As condições para a existência da vala começaram em 1968 com a terraplanagem do terreno para a instalação do cemitério, antiga reivindicação da população de Pirituba e Perus.
Em registros documentais de 1969, a comissão verificou que no projeto do cemitério havia a previsão de construção de um crematório e o uso do local apenas para enterro de indigentes, mortos que não têm documentos e/ou não têm seus corpos reclamados por familiares.
O forno para o crematório já estava encomendado desde 1969 para a empresa inglesa Dowson & Mason. Ao analisar o projeto, no entanto, os ingleses questionaram a ausência de uma sala de cerimônia para as famílias se despedirem de seus entes. Também notaram que o acesso ao forno seria feito por portas de “vai-e-vem”, abertas o tempo todo, o que facilitaria a entrada de quem quisesse na área do forno, sem controle.
Em 1971, o cemitério foi inaugurado pelo então prefeito Paulo Maluf, mas sem crematório. Seu uso, no entanto, continuou definido como apenas para indigentes, deixando a população da região sem cemitério para enterrar seus mortos —à época, o cemitério de Caieiras, o mais próximo, estava lotado.
Chamou a atenção da CPI a insistência no uso do terreno para o enterro apenas de indigentes. Em seus dois depoimentos à comissão, Fábio Pereira Bueno, diretor do Departamento de Cemitérios da Prefeitura de 1970 a 1974, afirmou que a decisão aconteceu após entendimento com o IML (Instituto Médico Legal), na pessoa do médico legista Harry Shibata, então integrante da diretoria. Shibata argumentava que Perus seria o melhor destino para os indigentes por haver mais “facilidade de acesso do pessoal do IML” ao local. Até então os indigentes eram levados para o cemitério da Vila Formosa.
Ao lado do também legista Isac Abramovitch, Harry Shibata foi responsável pelas assinaturas dos laudos falsos do IML que atestavam a causa mortis dos corpos de presos políticos que chegavam do DOI-CODI. O DOI (Destacamento de Operações e Informações) e o CODI (Centro de Operações e Defesa Interna) foram órgãos criados pelo governo, diretamente ligados ao Exército, com o objetivo de coordenar e integrar as ações de repressão a indivíduos ou organizações políticas.
Com o cemitério já em funcionamento, em 1975 e 1976 ocorreram exumações em massa nas quadras 1 e 2 de Perus, ocupadas pelos indigente. Os ossos foram ensacados sem identificação e, após alguns meses amontoados em uma sala do velório, foram descartados na vala comum descoberta anos mais tarde.
Mesmo com condições favoráveis à época para a cremação das ossadas, elas foram colocadas na vala. A CPI não encontrou respostas para essa decisão, mas considera que tenha sido a solução mais discreta, já que não seria simples transportar e queimar as 1.049 ossadas na Vila Alpina.
Em meio a essas ossadas estavam presos políticos desaparecidos que foram mortos pelo aparelho de repressão da Ditadura.
As decisões sobre a construção do cemitério, o seu uso, o crematório e a criação da vala aconteceram durante as gestões dos prefeitos Paulo Maluf, Figueiredo Ferraz e Miguel Colassuono, durante o Regime Militar, com base no Sistema de Segurança Interna, criado em 1970 para articular as ações das instâncias Federal, Estadual e Municipal.
O trabalho da CPI foi de grande contribuição para a luta histórica dos familiares de mortos e desaparecidos do período da Ditadura Militar e até hoje, com base na antropologia forense, estamos cuidando das ossadas buscando identificar novos presos políticos – cinco já foram identificados.
As descobertas da comissão também escancararam o descaso e a forma desrespeitosa como eram e ainda são tratados os indigentes, deixando milhares de famílias sem a chance de se despedir e de cuidar de seus mortos. O Instituto Médico Legal e o Serviço de Verificação de Óbitos do município continuam a considerar que pessoas, mesmo portando RG, devem ser enterradas como indigentes se não forem procuradas em até 72 horas após sua morte.