Metade da população do Egito é procurada pela Promotoria Pública

Confesso que não pude crer nas notícias quando as li e pensei por um momento tratar-se de mero boato, mas fui surpreendido pelas declarações do conselheiro Ibrahim Lashin, chefe da Autoridade Eleitoral do Egito, explicando as circunstâncias da estranha decisão e suas supostas bases legais.

Segundo o Artigo 57 da Lei sobre Exercício dos Direitos Políticos, decreto n°45, de 2014, qualquer um que deixe de participar das eleições será punido com multa de 500 libras egípcias (US$31.5). Neste caso, significa que mais de 54 milhões de cidadãos egípcios serão convocados a pagar a soma punitiva, equivalente a 85% do eleitorado e 50% da população. Caso o valor total da multa prevista seja de fato coletado, o estado deverá angariar aproximadamente 27 bilhões de libras.

Vale a pena?

Esta é a grande questão a ser respondida, em particular, dado que o Senado não é nada senão uma fachada decorativa, sem qualquer poder para tomar decisões na vida política do país. Mesmo a decisão de constituir a câmara alta foi feita por emendas constitucionais recentes, segundo as quais Sisi exigiu permanecer no poder até 2030. Alguns itens superficiais foram adicionados de modo que não seja tão transparente o fato de Sisi desejar que todas as emendas sirvam apenas a si mesmo. A formação do Senado está entre tais elementos absurdos.

O Senado será composto de 300 membros, dos quais cem serão indicados pelo próprio Sisi, cem indicados por um sistema de lista fechada e cem indicados pelo sistema de mandato eleitoral.

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Curiosamente, além do fato de Sisi indicar cem senadores, apenas uma coalizão apresentou-se ao pleito, para angariar os cem assentos disponíveis: o partido pró-Sisi Futuro da Nação, junto de outros partidos menores da base governista. Com efeito, isso significa que tais eleições foram baseadas no cenário, diálogo e diretriz do presidente Abdel Fattah el-Sisi e seus associados diretos.

Em qualquer democracia verdadeira, caso 85% do eleitorado decida, por inúmeras razões, abster-se de participar do voto, os partidos teriam de reagir ao reconhecer imediata derrota. Além disso, deveriam renunciar prontamente, pois fracassaram em obter o voto de confiança da população. Contudo, a realidade confirma que há uma vasta diferença entre sistemas e experiências democráticas, por um lado, e o que ocorre hoje no Egito de Sisi, por outro.

Ao contrário, ao invés de examinar os fracassos políticos do regime e seus aliados, as emissoras ligadas ao governo decidiram debater sobre a coleta das multas, provenientes de metade da população egípcia, ao tentar responder uma enorme dúvida – a Promotoria Pública é sequer capaz de acomodar o comparecimento de mais de 50 milhões de egípcios em sua sede?

Alguns juristas propuseram cinco meios efetivos pelo qual o estado pode coletar as multas de 500 libras: quando o cidadão tenta adquirir documento de identidade; quando requer carteira de motorista; dedução do salário empregatício; surpreender o cidadão que tenta obter qualquer documento oficial; ou envio direto da cobrança ao endereço de cada um dos cidadãos egípcios.

O regime decidiu então hastear a bandeira: o povo é “procurado pela Promotoria Pública”, portanto, pelo próprio estado, com todo seu aparato de segurança e seu sistema judiciário, que deverá ir atrás de metade da população egípcia. No futuro, cidadãos terão medo de comparecer a instituições públicas por qualquer razão. Todo mês, aguardarão ansiosos para saber se recebem o salário completo ou se haverá deduções absurdas. Ao obter qualquer documento ou renovar a carteira de motorista, manterão olhares atentos e receosos, esperando o momento de uma prisão arbitrária somente para forçá-los a pagar uma multa pelo direito de abster seu voto.

O que o regime faz é contrário ao Artigo 65 da Constituição do Egito, que determina: “Liberdade de pensamento e opinião é garantida. Todos possuem o direito de expressar sua opinião em discurso, escrita, fotografia ou quaisquer outros meios de expressão ou publicação.”

No entanto, o atual regime egípcio não reconhece de fato nenhum aspecto da liberdade de opinião ou expressão dos cidadãos do Egito. O regime decidiu criar um Senado cujos candidatos são escolhidos a dedo por Sisi, como se a liberdade de opinião constitucional efetivamente se referisse apenas ao direito de expressar o que Sisi quer.

Desde 2014, o atual regime do Egito vivencia uma crise interna devido à falta de legitimidade perante eleições democráticas ou escolhas do povo. O regime, inaugurado via golpe militar contra a primeira experiência democrática do país, após a Revolução de 2011, no contexto de Primavera Árabe, ainda se agarra ao espectro do medo. Sisi considera cada nova eleição como um referendo à sua própria sobrevivência no poder.

Todavia, a questão não está no Senado decorativo, mas sim nas eleições parlamentares do Egito, previstas para ocorrer no próximo mês. Sisi e seus aliados talvez não sejam capazes de suportar um cenário semelhante ao das falaciosas eleições senatoriais.

A estratégia de medo e pressão econômica sobre o povo do Egito é o elemento mais proeminente do atual regime. Com mais de 60% do povo egípcio abaixo da linha da pobreza, segundo dados do Banco Mundial, o fantasma de uma multa de 500 libras assombra os pobres cidadãos comuns de todo o Egito.

Foto: Cidadãos egípcios, com máscara devido à pandemia de covid-19, aguardam em fila em uma estação eleitoral, para votar no novo Senado, em 11 de agosto de 2020 [Khaled Desouki/AFP/Getty Images]

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