Ninguém pode me parar

Desde a mais remota tradição a música tem sido apontada como uma arte sublime, transcendente e sutil, reputada por muitos filósofos e pensadores como parte de uma sincronicidade universal.

A música, entretanto, registra através dos séculos uma história que se vê atolada em acirradas lutas, disputas, desafios e perseguições muitas vezes sangrentas, entre tradições, estilos, tipos de instrumentos e gerações.

Também apresenta uma cisão quase inconciliável entre a música enquanto forma de pensamento e racionalidade do teórico ou compositor — classicamente atributo dos nobres — e a música prática como arte de entretenimento, realizada por músicos que, embora extremamente habilidosos e competentes que tocam e encantam plateias, adquirem sua habilidade pela prática, pela repetição e pelo treino.

Enquanto o compositor, o teórico ou o estudioso, parecem praticar a música em sua plenitude de transcendência e universalidade, o músico prático normalmente é considerado um libertino, que encanta na mesma medida em que submete a própria racionalidade e virtude humanas à lascívia e voluptuosidade da paixão, afogando as mais belas ponderações da alma com ritmos, sons ou melodias que incitam à dança e ao prazer corporal do contato e da orgia.

O que se nota é que a carga ideológica que a música sempre portou e esteve inserida parece ser muito mais determinante do que a singela “apreciação” de uma melodia. Se lembrarmos, ainda, que a ideologia tem por característica principal seu auto ocultamento, o que chamamos de “belo”, “bonito”, ou que classificamos como “arte” ou como “bom gosto”, como “certo” e “errado” na música, podem estar respondendo a um processo de normalização: institucionalmente, quando algumas obras são efetivamente proibidas ou censuradas pelo poder público, de forma velada quando olhamos para algo e, sumaria e docemente logo dizemos: “isso não é arte”!

Um dos mais antigos mitos na música é o de Mársias, um sátiro, isto é, meio homem meio bode, que tocava o aulo, uma flauta de dois tubos que se tornaria muito popular na antiga Grécia. O aulo era, originalmente, tocado pela deusa Atena que dispensou o instrumento quando viu seu próprio reflexo com as bochechas infladas e deformadas para a produção do som.

Mársias, então recolheu a flauta e tornou-se um exímio instrumentista e resolveu desafiar o próprio deus Apolo, que tocava a lira (fig. 1), um instrumento de cordas que fora construída por Hermes estendendo cordas sobre o casco de uma tartaruga e presenteado à Apolo, como reparação pelo roubo de seu gado.

Quando Mársias estava na iminência de ganhar o desafio, pois era dotado de uma excepcional habilidade como instrumentista, Apolo impôs uma nova regra para a competição, que lhe renderia a vitória final, pois colocaria o próprio instrumento do adversário — o aulo — como inferior à lira, portanto indigno de dar vitória ao seu executante: o músico que toca a lira é capaz de, ao mesmo tempo, recitar versos e acompanhar-se de sua própria melodia, o que não é possível para o tocador de aulo, pois é impossível soprar e cantar ao mesmo tempo.

Com esse novo artifício Apolo sagra-se vencedor e condena Mársias a ser esfolado vivo, tanto porque perdera quanto por ter desafiado um deus (fig. 1 e 3). Outras narrativas contam que de fato Mársias foi declarado vencedor da competição pelo Rei Midas, que também foi castigado com orelhas de burro pela decisão.

A disputa musical acompanha a história da música em vários de seus momentos, não apenas disputas individuais, mas como veto e proibição de ritmos, sons ou escalas.
Durante a vigência do Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição condenava a utilização, entre outras, do intervalo de quarta aumentada (ou quinta diminuta) que é obtido superpondo três tons inteiros — por exemplo, de dó a fá sustenido [#]: um tom entre do-ré, outro entre ré-mi e o terceiro entre mi-fa#, lembrando que entre as notas existem os semitons, as notas pretas do piano —, intervalo chamado de trítono (três tons) e apelidado de “diabolus in música” — o diabo na música — pois era de difícil afinação e soava muito dissonante para o padrão de gosto. Diversas composições foram censuradas e os músicos que praticavam o diabolus, punidos (fig. 2).

O fato mais interessante é que, depois da reforma de J. S. Bach (1685-1750) e da formalização da harmonia moderna, esse intervalo se tornou central em nosso sistema harmônico, sendo o responsável pelo acorde de principal tensão dentro de uma cadeia melódica e harmônica, o acorde de “sétima de dominante”, característico de grande parte das composições, populares ou clássicas, até hoje.

Outro episódio bastante peculiar ficou conhecido como a “Querela dos Bufões” (1752-1754) e que afundou Paris em uma verdadeira batalha estilística entre a ópera francesa e a ópera italiana. Tudo começou com a trupe de Eustacchio Bambini (1697-1770), que se instalou na Académie royale de Musique para representar algumas óperas bufas, debutando com “La Serva Padrona”, de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736). A batalha envolveu alguns dos mais importantes pensadores do Iluminismo, divididos entre Jean-Philippe Rameau (1683-1764), partidário da música francesa, comedida e séria e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que propunha uma simplificação e mais naturalidade, estabelecendo uma conexão entre a música e as paixões humanas.

Alguns séculos depois, já no século XX, os Festivais da Record (década de 1960, figuras 4-6) parecem mostrar que as batalhas musicais continuavam vivas. Os festivais marcam um ponto de inflexão importante na configuração da Música Popular Brasileira (MPB) e nesse contexto ocorre a batalha entre as inovações eletrônicas e psicodélicas trazidas pela Tropicália e pelas influência do rock e a chamada tradição de raiz do samba e do choro: em São Paulo grandes nomes que entrariam para a história da MPB — Caetano (1942), Gil (1942), Paulinho da Viola (1942), Beth Carvalho (1946), Elis Regina (1945-1982) e outras e outros tantos — realizam a “Marcha Contra a Guitarra” (julho de 1968, fig. 4). Ressalte-se que, ironicamente, praticamente a totalidade desses artistas se renderiam às novas sonoridades e seriam protagonistas de um dos principais momentos de inovação musical.

Uma resposta à Marcha viria nos “Festivais da Record”, onde explodem as imagens e os sons psicodélicos da Tropicália, dos Mutantes e as guitarras parecem gritar não apenas contra as tradições, mas contra a própria Ditadura Militar (setembro de 1968, fig. 6). Nos festivais o público se divide e ouvem-se as vaias, produzidas pelos nacionalistas, principalmente ligados ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) quando os cabeludos e barulhentos tomam o palco, desnaturalizando, segundo eles, a nossa brasilidade e nossas mais preciosas tradições.

Um dos pontos icônicos, além das vaias aos Mutantes e aos Novos Baianos foi o famoso violão de Sérgio Ricardo (1932-2020, fig. 5), quebrado e arremessado contra a plateia, rememorando as querelas e as disputas gregas.

A tortura e o exílio atualizaram a imolação dos músicos e artistas, mostrando como a música continuaria mexendo profundamente com as entranhas da política e da disputa ideológica.

Um dos mais recentes e, quiçá, dos mais cruéis de todos os espetáculos não foi, entretanto, mitológico, nem soou iluminista, nem muito menos esteve sob o holofote intelectual da modernidade da MPB…

Evoluímos da imolação mitológica para o extermínio racista e, em pleno século XXI, diante do desprezo e desatenção de alguns, do espanto e revolta de outros, mas principalmente ressuscitando a morte dentro da estética musical como repressão cultural, a Comunidade de Paraisópolis, durante o Funk do “Baile da 17”, um dos principais pontos dessa cultura, é brutalmente sitiada e o público violentamente reprimido, deixando um saldo de nove jovens mortos.

Parece que a música é mesmo sublime, mas não por sua transcendência, sublimidade ou pelas propriedades divinas, mas por sua RESISTÊNCIA COMO MEIO: mesmo com imolação, tortura religiosa ou do Estado, não reconhecimento social ou profissional, pisoteados, mortos e com a repressão armada e ostensiva… mesmo assim, ninguém nunca pôde parar a música que a humanidade faz como celebração de sua carne no mundo.

IMAGENS
FIGURA 1 – Marsyas tocando aulos em disputa com Apolo. Coluna Ateniense, c. 410Ac.

FIGURA 2 – São Wolfgang e o Diabo. Michael Pacher (1435-1498). Antiga Pinacoteca de Munique.

FIGURA 3 – A lenda de Mársias. Óleo sobre tela (1570-1575). Pintada por Ticiano (1473/1490-1576) já em sua velhice (ele morreria um ano depois).

FIGURA 4 – Marcha contra a Guitarra Elétrica. São Paulo, julho de 1967. Clio: História E Literatura, 2019.

FIGURA 5 – Sérgio Ricardo quebra do violão no Festival da Record, 1967. Foto do filme ‘Uma noite em 67’; Foto: Wilson Santos.

FIGURA 6 – É proibido proibir. Gil e Caetano no Festival da Record, 1968.

FIGURA 7 – Protesto da Comunidade de Paraisópolis pelo massacre que resultou em 9 mortos durante Baile Funk, 2019. Foto de Daniel Arroyo/Ponte.

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