Todas as artes, a arte

Em 1964, durante uma badalada exposição de arte contemporânea na Galeria Christinae, de Götemborg (Suécia), foram apresentadas quatro obras vanguardistas do enigmático e consagrado pintor francês Pierre Brassau. Um de seus quadros (figura 1) causou enorme impressão nos presentes — influentes galeristas, críticos e artistas (fig. 2) — a ponto de um deles, Rolf Anderberg, dedicar à obra uma resenha elogiosa em um importante jornal.

Nas palavras do crítico: “Pierre Brassau compõe suas pinturas com a graça de uma bailarina”.

Uma constrangedora revelação, entretanto, abalou profundamente os críticos e comunidade das artes: o grande Pierre Brassau era, na verdade, Peter (1960-?), um chimpanzé de quatro anos do Zoológica da cidade (3), a quem fora dado pinceis e tintas e, com anuência de seu cuidador, pintava em troca das bananas que recebia de incentivo.

A farsa foi montada por Ake “Dacke” Axelsson, jornalista do tablóide sueco Göteborgs-Tidningen, que havia decidido colocar à prova o valor das obras vanguardistas e, principalmente, o valor das críticas de arte, aferindo se os críticos poderiam diferenciar uma obra de um artista contemporâneo, como um quadro de Jackson Pollock (1912-1956), por exemplo Composition with Red Strokes (1946, fig. 4), dos de um chimpanzé (fig. 1), mais interessando em ganhar bananas do que no conceitualismo abstrato.

O caso foi parar na polícia e o jornalista acusado de fraude. Ake “Dacke” acabou se safando, alegando que tudo não passava de uma grande piada. O crítico que comparou a pincelada de Pierre a uma bailarina, manteve sua crítica e, mesmo depois de revelada a farsa, reforçou que o quadro era uma grande obra de arte. Já Peter, o chimpanzé pintor, tornou-se celebridade e acabou atraindo tantos visitantes e curiosos que passou a ter crises de ansiedade, tornando-se agressivo e tendo que ser transferido para o Chester Zoo, Cheshire, Inglaterra, em 1969.

A suspeita, por parte de um certo tipo de crítica, de que os próprios artistas seriam farsantes, entretanto, remonta ao início do século XX, desde as chamadas vanguardas.

Algumas ousadias estéticas chacoalharam o que parecia ser uma questão muito bem resolvida: a separação de um campo especial de objetos do mundo, reconhecidos por algum tipo de “aura” ou “essencialidade” transcendentais, que se destacavam por serem objetos de arte: Marcel Duchamp (1887-1968) exibiu um urinol masculino em uma exposição (Fountain, 1917, fig. 5); Andy Warhol (1928-1987) expôs uma pilha de caixas de sabão em pó como obra de arte (Brillo Box, 1964, fig. 6) e Ai Wei Wei (1957) apresentou um sem número de bicicletas (Forever Bicycles, 2011, fig. 7) como uma instalação artística.

Provocaram um profundo rompimento com o que a tradição afirmava sobre o que pode ou não pode ser considerado arte, exibindo objetos de uso comum e do cotidiano como obras artísticas: os ready-mades.

Parece que a arte passa a ocupar um lugar próprio na contemporaneidade não por seus cânones de beleza, ou uma possível essência definidora de sua sublimidade, mas pelo espaço de humanidade que pode despertar, reconstruir, reinventar e surpreender, seja por sua originalidade, seja por sua capacidade de perverter os próprios valores, seja pela característica imponderável de seu valor, ou ainda pela sua transcendental inutilidade com relação à vida concreta das fábricas, produtos e comércio, mesmo que se insira de vez em quando na própria lógica do comércio.
Talvez o momento exija um pensamento ousado e possamos ver na farsa marota de Ake “Dacke” não uma incapacidade de distinguir o que é arte, mas justamente em uma capacidade inalienável em reconhecer como arte qualquer objeto, por mais insólito que seja.

Mas isso não enfraquece a arte? Não cria um vale tudo onde qualquer pessoa possa se dizer artista?

Não sei. Creio que certamente enfraqueceria o mercado de arte, ou quem vive dele.
No entanto, não deixo perigosamente de considerar que há mais arte na vida de qualquer pessoa do que em qualquer pintura, por mais consagrada que seja: um tal transbordamento de arte tem a vida que nos faz projetar e reconhecer como arte o abstracionismo de Pollock e, por que não? As bananices de Peter.
Confusão para alguns, certeza de que a arte é possível e redentora — mesmo sob o obscurantismo e a pandemia — para outros.

As obras:

AI, Weiwei. Forever Bicycles. Taipei Fine Arts Museum, 2011. Composição com Bicicletas. (fig. 7)

BRASSAU, Pierre. Sem nome. Göteborg, Sweden, 1964. Óleo sobre tela. (fig. 1)

DUCHAMP, Marcel. Fontaine [A Fonte]. New York, Society of Independent Artists, 1917. Urinol de porcelana branco. 61 X 36 X 48 cm. Disponível em: acervosvirtuais. (fig. 5)

POLLOCK, Jackson. Free Form. MoMA, New York @The Sidney and Harriet Janis Collection, 1946. Gotejamento de tinta óleo sobre tela. Disponível em: Moma. (fig. 4)

WARHOL, Andy. Brillo Box. Lisboa, 1964. Silkscreen ink and synthetic polymer paint on wood. 43.3 x 43.2 x 36.5 cm (cada caixa). Disponível em: flickr. (fig. 6)

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