Indianara, o doc: o Brasil sob a ótica queer e feminista

O filme Indianara traz como sinopse a “história da ativista transexual Indianara Alves Siqueira”, mas entrega um painel da história recente do Brasil com o impeachment de Dilma Rousseff, o movimento Fora Temer, a morte de Marielle Franco e a eleição de Bolsonaro. Indianara, que atualmente adotou o nome Indianare, não binário, é a criadora da Casa Nem, espaço de acolhimento idealizado pela ativista para pessoas LGBTQIAP+ em situação de vulnerabilidade, atualmente situada em Copacabana, na Dias da Rocha, ao lado do tradicional mercado Zona Sul. Ao ser indicado para concorrer à Queer Palm no Festival de Cannes, em 2019, e conquistar o Coelho de Ouro no Mix Brasil, o documentário Indianara transformou-se numa bandeira da temática de gênero.

Indianara, o doc, não é uma cinebiografia, como o nome pode sugerir, mas sua protagonista é a militante transexual Indianara Siqueira, paranaense de Paranaguá, que viveu anos na Europa, prostituta, já esteve presa na França, e hoje vive no Rio, totalmente dedicada a seu ativismo, ao lado do marido, Maurício.

O trabalho da Casa Nem tem por foco principal retirar as travestis e transexuais da rua, mas não necessariamente da prostituição. Elas têm todo apoio para sair de uma situação de marginalidade e pobreza, recebem orientação, mas decidem o que fazer de sua vida e de sua sexualidade. Sem moralismos. Sua vida e sua trajetória solo certamente forneceriam farto material para qualquer documentário, ou mesmo uma ficção, com todos os ingredientes de thriller político. Mas o documentário é generoso, e o que se vê ao longo das imagens do documental é um pedaço essencial da vida recente do país, a partir do seu lugar de fala, mulher transexual, consciente do seu tempo e do seu corpo. A narrativa do filme, realizado pelo brasiliense Marcelo Barbosa e pela francesa Aude Chevalier-Beaum, foi se construindo ao longo das gravações, no período de três aos, e acabou colhendo imagens sobre eventos e personagens essenciais na história recente do país.

As manifestações transfóbicas que antecederam a eleição do candidato do Partido Socialista Liberal (PSL), Jair Bolsonaro, trazendo um contexto de desilusão e desesperança, são assistidas pelas militantes da casa, que diante da televisão, recebem em prantos a vitória do candidato conservador. A cena é a mais perfeita tradução da falta de perspectiva e desalento com que as políticas conservadoras assolam o país vêm semeando.

Há performances de personagens da casa, festas, em cenas discretas e sensíveis, mas que respiram autenticidade. Algumas moradoras preferiram não ser expostas e foram respeitadas. As manifestações de rua são o ponto alto do filme, que traz cenas de Indianare com a vereadora Marielle Franco – ambas militaram juntas no PSOL – antes de sua execução no dia 14 de março de 2018. Indianare, que foi eleita vereadora suplente em 2016 pelo PSOL, foi expulsa do partido em 6 de abril de 2019 por problemas de conduta ética de seus companheiros da Casa Nuvem, num episódio polêmico, contestado por ela em cena, num discurso afirmando que nem os partidos de esquerda estão preparados para lidar com pessoas da sua condição.

O cotidiano de Indianare com suas amigas, e com seu companheiro Maurício, ex-militar e vivendo com HIV, em sua casa em Santíssimo, bairro suburbano do Rio de Janeiro, rodeada pelos cachorros – um dos Rotweillerss que surge em cena com ela morreu antes da estreia -, mostram sua intimidade, mas sempre como uma vivência de intervenção social. Vegana, ela faz questão de pichar no muro a frase “Nem deus, nem pai, nem patrão, nem marido”, registrada na cena que antecede a sequência de seu casamento-espetáculo, um evento. A frase é uma versão feminista do slogan anarquista “Nem Deus, Nem Patrão” e símbolo do feminismo anarquista da Argentina no final do século 19.

A câmera é cúmplice de toda essa trama e se faz quase imperceptível na maioria das cenas, mesmo quando acompanha a privacidade do casal e de suas amigas na piscina de plástico do quintal. O filme estreou no dia 9 de dezembro de 2019 na França em 24 salas de cinema, com críticas assinadas pelos principais jornais locais, mas como aconteceu com outras obras importantes do cinema nacional, não conseguiu ser lançado em cinemas no Brasil, por conta da pandemia. O filme está disponível nas plataformas YouTube, Google Play, NOW, Vivo Play, Apple TV itunes e Mubi.

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