5G e Covid-19

Saltou a grade de proteção e recebeu de fora a sacola. Olhou para cima e viu a luz piscando no topo da estrutura de metal ainda antes de cortar o sinal daquela célula incendiando os equipamentos em sua base. A operação havia sido rápida e fácil, mas, soube que, não longe dali, outra pessoa escalou trinta metros e ateou fogo diretamente nos radiotransmissores 5G, bem próximo a cabos eletrificados de alta tensão.

Ao longo dos últimos dois meses mais de 80 torres de operadoras móveis foram incendiadas apenas no Reino Unido, onde os ataques são mais frequentes, incluindo agressões a engenheiros e técnicos das empresas operadoras de rede. Há também múltiplos registros de incêndio em outros países da Europa, Oceania e América do Norte. É possível supor que a prática será cada vez mais frequente, provavelmente executada por pessoas e razões diversas das que vêm sendo apontadas atualmente.

Embora os incêndios provocados em torres de rede celular venham sendo registrados desde antes do início da pandemia de Covid-19, os casos se intensificaram nos últimos meses depois que vídeos e textos passaram a circular nas redes sociais estabelecendo relações entre a instalação das redes 5G e o novo coronavírus. Algumas tentativas de identificar a origem da teoria apontam para a entrevista de um clínico geral na publicação impressa de um jornal local, na Bélgica [1]. Depois disso, outro médico, num vídeo já não mais disponível, fez relações entre as grandes epidemias da história da humanidade e mudanças no campo eletromagnético da Terra. O 5G seria responsável por alterar o campo de radiação eletromagnética tornando nossos corpos mais vulneráveis à expansão do coronavírus. Desde então, diferentes entidades se manifestaram contrariamente às teorias indicando que não há nenhum indício de que as ondas eletromagnéticas emitidas pelas tecnologias 5G tenham qualquer efeito prejudicial sobre a saúde. A Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que, embora faltem pesquisas sobre as frequências específicas utilizadas pelo 5G, elas estão dentro do intervalo considerado seguro (até 300Ghz) pelas atuais pesquisas e padrões internacionais [2].

A despeito disso, as teorias continuam circulando amplamente. A revista que é símbolo do vale do silício, Wired, apontou interesse da Rússia em disseminar fake news e teorias conspiratórias sobre o 5G (o que vem acontecendo pelo canal RT News) com objetivo de atrasar sua implementação até alcançar o estado da arte no desenvolvimento da tecnologia [3]. Curiosamente, o mesmo argumento valeria para os Estados Unidos (EUA), uma vez que sua principal competidora no campo de desenvolvimento tecnocientífico, a China, tem tecnologia mais madura para implementação. Já vem de algum tempo os ataques do governo Trump à tecnologia 5G desenvolvida pela China, o que inclui a listagem da Huawei num grupo de empresas que representam ameaça à segurança dos EUA. Aliás, o Reino Unido, região onde há o maior número de casos de incêndio em antenas, é um mercado que está sendo disputado de maneira agressiva por China e EUA. Estes últimos vêm fazendo pressão para que a Huawei seja deixada de fora do mercado depois que, no começo de 2020, o premiê britânico concedeu à empresa a permissão de participar, com restrições, da implementação do 5G [4].

O fato é que o desenvolvimento e implementação das redes 5G levantam questões importantes que vão desde o embate geopolítico entre estados e corporações, passando por questões associadas à vigilância e, portanto, à possibilidade de restrição do exercício de liberdades coletivas e individuais, chegando até (e porque não?) a questões de saúde pública. Nos parece vital entender que as manifestações incendiárias contrárias ao 5G e as teorias que o associam à pandemia são também resultado da falta de transparência de estados e corporações quanto ao funcionamento de nossa infraestrutura básica de informação e comunicação. São recursos críticos para o modo de vida contemporâneo que ganham ainda mais importância com a pandemia e que gozam de cada vez menos confiança dos usuários. Não deveria ser preciso lembrar que essa confiança vem sendo minada ao menos desde 2013, com o caso Snowden. Nos parágrafos que seguem, vamos defender que há fundamento para preocupações sobre o futuro que está sendo construído na interface entre a crise sanitária e as tecnologias de informação e comunicação, incluindo o 5G.

Vigilância como meio de combate à pandemia

O 5G tem parte na distopia tecnológica para a qual o coronavírus vem servindo de catalisador. Naomi Klein, que vem escrevendo sobre “A Doutrina do Choque” (2007) há mais de uma década, considera que a pandemia abre a possibilidade para grandes empresas de tecnologia atropelarem direitos fundamentais para impor seu modelo de negócio e, consequentemente, um futuro “[…] em que nossas casas nunca mais serão espaços exclusivamente pessoais, mas também [serão], via conectividade digital de alta velocidade, nossas escolas, consultórios médicos, academias e, se determinado pelo estado, nossas cadeias.” […] “É um futuro em que todos os nossos movimentos, todas as nossas palavras, todos os nossos relacionamentos são localizáveis, rastreáveis e passíveis de terem seus dados minados por colaborações inéditas entre os governos e as empresas gigantes de tecnologia.” (Klein, 2020)

Klein (2020) descreve uma apresentação da Comissão de Segurança Nacional para Inteligência Artificial (NSCAI) do governo dos EUA, presidida pelo ex-CEO do Google, em que se lê: “A vigilância é um dos ‘primeiros e melhores clientes’ de IA”. O documento está disponível para consulta [5] e oferece um panorama do cenário da indústria tech chinesa e relativiza a vigilância digital do governo chinês sobre sua população apontando para possíveis ganhos que o efeito escala produziria sobre técnicas de aprendizagem de máquina. Quanto mais vigilância, melhor para a inteligência artificial. Nesse sentido, a proteção à privacidade e aos dados pessoais soam como empecilho ao desenvolvimento tecnológico e à segurança nacional. O Vale do Silício pode perder a corrida no desenvolvimento de IA porque há resquícios de democracia que ainda impedem o escrutínio completo da vida de cada pessoa e de diferentes populações. A pandemia, não custa repetir, é uma oportunidade clara de suprimir direitos fundamentais e a democracia, em suma, de fazer passar a boiada em diversos planos. Como afirmou Rafael Evangelista nessa mesma ComCiência [6], a leitura aceleracionista da pandemia a interpreta como o empurrão definitivo para o capitalismo de vigilância, tudo devidamente revestido de um verniz humanitário de caráter salvacionista.

Há motivos, portanto, para grave preocupação com o abuso na utilização de dados pessoais para o combate à pandemia por governos (em seus diversos níveis) em conjunto com empresas privadas e outras organizações. A plataforma para desenvolvimento de aplicativos que está sendo desenvolvida em conjunto pela Apple e pelo Google para (IOS e Android) para rastreamento de contato social via Bluetooth, por exemplo, pode ser tomada nessa chave. A primeira e mais importante pergunta que nós devemos fazer questiona a real necessidade de aplicativos como esse. Caso a resposta seja positiva, ainda seria preciso responder de maneira adequada outras quinze questões para que a implementação seja considerada eticamente válida (Morley et al., 2020).

No contexto específico brasileiro, um acordo que merece atenção está sendo construído entre o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e a empresa Cisco. De acordo com a comunicação do MCTIC [7] a “Iniciativa é parte de programa global da Cisco e visa impulsionar a transformação digital e o uso de novas tecnologias para ajudar na recuperação econômica e social do país”. A “ajuda” deve acontecer numa gama tão ampla quanto estratégica de frentes como cibersegurança, Internet das Coisas, cidades inteligentes, indústria 4.0, WiFi 6, 5G e, claro, “iniciativas de resposta à COVID-19”. Entre as ações listadas pelo comunicado está ainda a “Plataforma de Monitoramento do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação”[7] que pretende se dedicar ao “monitoramento, gestão e definição de políticas públicas no país através da consolidação de informações sobre os diversos programas, ações, iniciativas e atores, públicos e privados, envolvidos com pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação no Brasil”[7]. As metas ambiciosas do comunicado contrastam com a falta de informação sobre o capital a ser investido pela empresa no programa bem como sobre as contrapartidas do governo. O memorando de entendimento assinado em presença da imprensa entre o ministério e a empresa não foi tornado público. A Cisco, embora menos conhecida, é uma das empresas mais importantes do Vale do Silício e atua na base da infraestrutura de rede produzindo equipamentos e sistemas de gestão de seu funcionamento. É uma das competidoras da Huawei nesse setor específico das redes 5G.

Entre as vantagens competitivas que os Estados Unidos ainda mantêm sobre a China está justamente a indústria do silício, onde fabricantes de chips e microprocessadores como Intel e Qualcomm ainda são as principais fornecedoras de fabricantes chinesas como Huawei e ZTE. O embargo promovido pela administração Trump às empresas chinesas, então, lhes causa enormes danos e abre espaço no mercado de redes 5G para que as empresas norte americanas ocupem. O que se delineia aqui é uma corrida tecnológica que tem seus alicerces no domínio da infraestrutura de vigilância a fim de permitir o controle ainda mais incisivo de informação via IA no contexto de uma nova e incerta ordem mundial pós-pandemia.

O futuro imaginado da Internet das Coisas, das cidades inteligentes, dos carros autônomos, dos drones e das câmeras de vigilância é aquele em que sistemas de IA vão reconhecer nossas faces, corpos, trejeitos, ânimo e humor. Esse é o futuro para o qual o 5G servirá de infraestrutura essencial. Diferentemente do que ocorreu noutras passagens de geração das redes celulares, não há nenhuma inovação disruptiva na tecnologia de interface aérea que vá permitir maior número de dispositivos conectados e mais banda. A expansão da capacidade de tráfego da rede e a baixa latência, caso sejam de fato alcançados como planejado, serão resultado de mudanças na gestão dos recursos de rede, que ganha mais funções controladas por software como a que permite seu fatiamento (network slicing) exclusivo para um determinado serviço ou empresa. Além da possibilidade de fateamento da rede para fins e clientes específicos, o aumento de performance que se prevê para o 5G está relacionado simplesmente com o fato de que haverá uma nova infraestrutura funcionando com recursos adicionais, inclusive no que diz respeito ao espectro de radiofrequências. O 5G é menos o resultado de grandes inovações técnicas do que da concepção de uma visão de futuro de um setor do capitalismo informacional cujo foco repousa na implementação de sensores de diversos tipos e na comunicação entre máquinas. O slogan de uma das fabricantes de aparelho mais populares na primeira década do século, a Nokia, já não faz mais sentido. O 5G não está sendo feito para “conectar pessoas” e sim para conectar máquinas que capturam, monitoram e controlam atividades humanas e não humanas.

É possível imaginar que incêndios na infraestrutura de rede 5G seriam uma resposta possível aos prováveis atropelamentos causados por carros autônomos? Ou ainda, é possível imaginar que seriam resposta à vigilância que fecha cada vez mais o cerco especialmente sobre determinadas populações e grupos? Num dos vídeos citados pela imprensa [8] e utilizados como fonte para esse artigo, ao deixarem a cena após atearem fogo numa antena, ouve-se um dos homens gritar “F… 5G,” “F… a Nova Ordem Mundial.” Enquanto CEOs de empresas de telefonia móvel sugerem que os incêndios são ações terroristas, e a imprensa aborda o tema apenas na chave da teoria da conspiração, sabemos que na relação entre a Covid-19 e o padrão 5G há muito mais em jogo.

ComCiência

Diego Vicentin é Cientista Social, doutor em Sociologia e professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da UNICAMP.

Fernanda R. Rosa é Cientista Social, doutora em Comunicação e Postdoctoral Fellow no Center for Advanced Research in Global Communication (CARGC) da Universidade da Pennsylvania.

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