Os Revolucionários [Figura 1], do espanhol Rafael Canogar (1935), é um trabalho de 1968 feito com pintura a óleo sobre madeira, poliéster e fibra de vidro, exposto no Museu de Arte Contemporânea da USP, o MAC.
De longe já se destaca e causa uma grande impressão sobre os visitantes, por aparentemente romper com ideias pré-ordenadas em nossa mente sobre o que seja uma pintura, uma escultura e como deveriam ser formas expressivas distintas.
A obra é sem dúvida um quadro, montado sobre uma plataforma disposta como tapume. No entanto, brotam da pintura os passos, mãos e botas dos revolucionários, que se arremessam para fora do plano, nos abrindo para o evidente fato de que também é uma expressão tridimensional.
Apesar de acharmos natural uma distinção entre uma interpretação bidimensional na pintura e um fenômeno material do volume na escultura, normalmente nos esquecemos que também apresentam, ao longo da história, uma manifestação híbrida: os pintores renascentistas usavam modelos tridimensionais — pequenas figuras modeladas em argila — para estudar com precisão a luz e sombra que acompanhavam a experiência da reprodução pictórica do espaço real. Os arqueólogos, desde o século XIX, já nos revelaram que os gregos pintavam a superfície de suas esculturas, ao contrário do que muitos pensam, mostrando que a cor se mostrava fundamental no exercício daquela arte. A imersão nas pinturas dos paisagistas mais célebres nos convida a uma experiência espacial virtual.
Malgrado não se possa evidentemente negar que a pintura e escultura tenham uma diferença de técnica ou feitura básica, talvez a maior diferenciação que tenham é como o olhar é dirigido a elas: parece que o trabalho perceptivo que o corpo realiza é que é diferente em cada uma delas.
Diferem principalmente em como dispõe para nós a profundidade.
Quinhentos anos depois das soluções do Renascimento e quatrocentos anos depois que Descartes inaugura a razão moderna, “a profundidade continua sendo nova, e exige que a busquem, não ‘uma vez na vida’, mas durante toda uma vida”, como nos diz Merleau Ponty.
A profundidade pode ser compreendida, na arte e na vida, como uma experiência de troca e reversibilidade das dimensões, um lugar abstrato, subjetivo e simultâneo de tempo, altura, largura e distância com capacidade de dizer uma coisa está aí, presente e potencialmente histórica.
Os mais curiosos vão notar que, por detrás da plataforma, a vida da obra continua e o arremesso impetuoso dos revolucionários pela frente está amparado pela segurança do seu passo, apoiado no pé traseiro. A própria sustentação física da composição está ancorada sobre esse passo, como um cavalete de sustentação [Figuras 2 e 3], como se, metaforicamente, o arrojo idealista estivesse muito bem pregado no chão por um passo firme.
A profundidade e sustentação são compostas, ainda, de mais coisa: coragem, ímpeto e resistência. “Os Revolucionários”, em sua imagem e referência odiadas por qualquer ditador, foi realizado sob a ditadura de Franco na Espanha e exposta na XI Bienal de São Paulo, em 1971, uma época obscura no Brasil sob a ditadura Militar: o exílio de Mário Pedrosa (1900-1981), um dos maiores críticos e teóricos das artes; desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva (1929-1971); o assassinato de Carlos Lamarca (1937-1971)…
Em 1972, sob a direção de Walter Zanini (1925-2013), o MAC, Museu de Arte Contemporânea da USP adquiriu a obra: não foram os museus mais ricos ou com mais recursos que haveriam de dar profundidade devida a esse momento, mas um museu universitário e experimental de uma Universidade Pública, com a profundidade e radicalidade da construção do conhecimento, quando se faz dele história de resistência de um povo.
Foi durante o boicote dos artistas que a obra fincou pé, sustentando-se no pé oculto da coragem por detrás de si como eixo de sustentação, mostrando do que a arte, o artista e o público são capazes quando parece que vai faltar sonho, mas não falta.
Serviço:
Referência:
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Tradução: Paulo Neves, Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira, e Cássio de Arantes Leite. São Paulo: CosacNaify, 2013, p. 63.