Ramzy Baroud e Romana Rubeo
Mesmo antes de “achatar a curva” de muitos países que sofreram enorme mortalidade – sem contar a devastação econômica –, como resultado da propagação sem precedentes do covid-19, doença causada pelo coronavírus, pensadores e filósofos já especulavam, do conforto de suas próprias quarentenas, sobre os diversos cenários que tanto nos aguardam.
A devastação causada pelo coronavírus provavelmente terá consequências tão profundas quanto a “queda do Muro de Berlim ou o colapso do Lehman Brothers”, escreveu a revista Foreign Policy, em análise bastante lida na atual conjuntura, sob o título “How the World Will Look After the Coronavirus Pandemic” (“Como se parecerá o mundo após a pandemia de coronavírus”, em tradução livre).
Jornais e agências de notícias de grande circulação também embarcaram nas numerosas tentativas de construir possibilidades do mundo pós-coronavírus. Enquanto isso, a revista Foreign Policy ouviu doze pensadores contemporâneos sobre suas ideias, cada qual com sua própria leitura para o futuro.
Stephen M. Walt, professor de relações internacionais da Universidade de Harvard, concluiu que o “covid-19 criará um mundo menos aberto, menos próspero, menos livre”.
Robin Niblett, diretor do Instituto Real de Relações Internacionais do Reino Unido, escreve que é “bastante improvável … que o mundo retorne à ideia de globalização mutuamente benéfica definida no início do século XXI”.
Neste caso, “mutuamente benéfica” é uma expressão que requer um ensaio absolutamente distinto, pois a alegação é facilmente contestada pela experiência de países pequenos ou mais pobres.
Seja como for, a globalização é um ponto central na discussão apresentada por muitos desses doze pensadores, à medida que o maior ponto de divergência é justamente se a globalização sobreviverá em sua forma atual ou será redefinida ou mesmo completamente descartada.
Kishore Mahbubani, proeminente diplomata de Singapura, escreveu: “A pandemia de covid-19 não mudará fundamentalmente as diretrizes da economia global. Apenas deverá acelerar uma mudança que já começou: um movimento para longe da globalização centrada nos Estados Unidos, em direção a um perfil mais focado na China.”
E assim por diante…
Ao passo que economistas políticos concentram-se no impacto do covid-19 sobre tendências financeiras majoritárias e a decorrente mudança nos centros de poder político, ambientalistas enfatizam o fato de que a quarentena – imposta à vasta maioria da população global – traz novas esperanças de que não seja tarde demais para o planeta Terra.
Numerosos artigos, com citações científicas acompanhadas por fotografias ilustram os céus azuis sobre Deli e as águas limpas de Veneza, e destacam todos o aspecto de que as “mudanças” porvir terão consequências sobretudo ao meio-ambiente.
Com tantas profecias em curso, mesmo filósofos desacreditados, como Slavoj Zizek, tentaram retornar aos holofotes, ao providenciar previsões próprias sobre “vírus ideológicos”, incluindo “o vírus de imaginar uma sociedade alternativa, uma sociedade para além do estado-nação, uma sociedade que atualize a si mesma nas formas de solidariedade global e cooperação”.
Em artigo publicado pela revista alemã Die Welt, Zizek propõe o que descreve como “paradoxo”: ao mesmo tempo que o covid-19 representa um “golpe ao capitalismo”, também “deverá nos obrigar a reinventar o comunismo, com base na confiança nas pessoas e na ciência.”
Ironicamente, há apenas alguns anos atrás, Zizek – muitas vezes referido como “filósofo celebridade” – passou a defender um discurso bastante etnocêntrico contra refugiados, imigrantes e muçulmanos em geral.
“Jamais gostei dessa abordagem humanitária, de que se você realmente conversar com eles [refugiados que buscavam asilo na Europa], verá que somos todos o mesmo povo”, afirmou Zizek em seu livro “Refugees, Terror and other Troubles with the Neighbors” (“Refugiados, terrorismo e outros problemas com os vizinhos”). E reiterou: “Não, não somos – temos diferenças fundamentais.”
Em artigo sobre o livro de Zizek, publicado pela rede de notícias Quartz, Annalise Merelli descreveu: “Após os atentados terroristas em Paris, em 2015, Zizek alertou que os liberais precisam se livrar de tabus que impedem uma discussão aberta sobre os problemas decorrentes de admitir que pessoas de culturas distintas entrem na Europa, em particular, ao negar qualquer risco à segurança pública causado pelos refugiados.”
Este autodenominado “filósofo marxista” foi ainda além, ao tomar de empréstimo conceitos da teologia cristã, para explicar seu ponto de vista: “O lema cristão ‘ame ao próximo como a si mesmo’ não é tão simples quanto parece”, afirmou Zizek ao criticar a suposta “proibição de qualquer crítica ao Islã” nos círculos de esquerda.
“É um fato simples que a maioria dos refugiados vêm de uma cultura incompatível com noções ocidentais europeias de direitos humanos”, prosseguiu Zizek. Porém, convenientemente omitiu o fato de que justo o imperialismo, o colonialismo e as guerras por domínio econômico travadas pelo Ocidente constituíram os principais gatilhos para as sucessivas crises no Oriente Médio, por ao menos um século.
Seria seguro assumir que a pouco ortodoxa “reinvenção do comunismo” proposta por Zizek exclui milhões de refugiados que pagam hoje o preço por tais eventos históricos, não pelas doenças da “economia global” – como propõe, convenientemente –, mas pelo neocolonialismo hegemônico e beligerante do Ocidente.
Nossa ênfase aparentemente desproporcional nas ideias perturbadoras de Zizek serve apenas para ilustrar que uma “filosofia de celebridades” não apenas é inútil neste contexto, como também serve de distração para discussões verdadeiramente mais urgentes, sobre as mecânicas de uma mudança justa na sociedade, um processo continuamente reprimido por guerras, racismo, xenofobia e ideologias populistas de extrema-direita.
Na verdade, é muito mais fácil prever o futuro da globalização ou da poluição do ar quando analistas são confrontados com indicadores diretos – avanços tecnológicos, taxas de exportação, flutuação de câmbio e qualidade do ar.
Falar sobre a reinvenção da sociedade, com tão pouca credibilidade a seu dispor, é equivalente a achismo intelectual, particularmente quando o assim chamado intelectual é quase plenamente descolado dos desafios cotidianos da sociedade.
O problema com a maior parte das análises sobre os vários “futuros” possíveis é que muito pouco dessas previsões são estabelecidas por um estudo honesto sobre os problemas que tanto afligiram nosso passado quanto nosso presente.
Mas como poderemos criar uma melhor compreensão e resposta apropriada sobre o futuro e seus desafios, se somos de fato desonestos ao confrontar e dissecar os problemas que nos trouxeram a este ponto de crise?
Concordamos. O futuro trará mudanças. Deve ser assim. É preciso. Porque o status quo é simplesmente insustentável. Porque as guerras no Iêmen, Líbia, Síria e Afeganistão; a ocupação israelense sobre a Palestina; a desumanização e miséria econômica da África e América do Sul, e assim por diante, não podem tornar-se de modo algum cotidianas.
Mas para que este mundo melhor e mais igual chegue até nós, nossa compreensão sobre ele deve situar-se dentro de uma historicidade legítima, uma ideologia justa e um ponto de vista humano sobre os problemas do mundo, de nós mesmos e dos outros – em contraponto às perspectivas convencionais das celebridades ocidentais da economia e da filosofia, tão tacanhas quanto descoladas da realidade.
É de fato curioso como Zizek e seus pares podem manter-se apegados a um ponto de vista etnocêntrico da Europa e do Cristianismo enquanto preservam a imagem de “comunistas”. Que tipo estranho de comunismo é essa ideologia que não reconhece a centralidade e a história das lutas de classe no mundo?
Caso puséssemos a luta de classes marxista dentro de termos mais amplos e globais, seria mais apropriado e sustentável então assumir que as potências ocidentais representam historicamente a “classe dominante”, à medida que o Hemisfério Sul, colonizado e oprimido ao longo da história, representa as “classes subordinadas”.
É precisamente essa dinâmica de opressão, expropriação e escravidão que alimentou o “motor da história” – a noção marxista de história é movida por contradições internas dentro do sistema de produção material.
Seria meramente ingênuo pressupor que a eclosão de uma grave pandemia pode automática e inexoravelmente, por si só, incitar e produzir mudanças, e que tal “mudança” tão romantizada favoreça intuitivamente as “classes subordinadas”, seja sobre estruturas sociais locais ou em escala global.
Não se pode negar de modo algum que a crise vigente – seja econômica ou de saúde pública – é fundamentalmente estrutural, cujas origens podem ser traçadas a diversas falhas sísmicas no sistema capitalista, que sofre hoje aquilo descrito por Antonio Gramsci, intelectual e político antifascista, como “interregno”.
Em seus “Cadernos do cárcere”, Gramsci escreveu: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e que novo não pode nascer; isto é o interregno, quando uma grande variedade de sintomas mórbidos passam a surgir.”
A “variedade de sintomas mórbidos” foi expressada nas últimas décadas através de um declínio gradual, se não extermínio, do próprio sistema global que foi construído tão diligentemente pelas forças ocidentais capitalistas, que por sua vez moldaram o mundo conforme seus próprios interesses por quase um século.
Pensava-se que o colapso da União Soviética no fim da década de 1980 nos levaria a um novo mundo – incontestável, militarista em seu âmago e orgulhosamente capitalista. Entretanto, muito pouco mudou. A primeira aventura militar dos Estados Unidos no Iraque, entre 1990 e 1991, o paralelo de “Nova Ordem Mundial” e o subsequente “novo Oriente Médio”, tudo isso levou a nada.
Frustrados por sua incapacidade em transpor sua superioridade militar e tecnológica a uma hegemonia sustentável em campo, os Estados Unidos e aliados ocidentais desmoronaram de modo muito mais rápido do que o esperado. O plano de Barack Obama de virar o “eixo” à Ásia – acompanhado por um recuo militar no Oriente Médio, rico em petróleo – foi somente o início de uma queda inevitável que absolutamente nenhum governo americano, seja beligerante ou irracional, possa interromper.
Impotentes diante das implacáveis crises enfrentadas pela antes triunfante ordem capitalista, instituições hegemônicas do Ocidente – como Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e União Europeia (UE) – tornaram-se inúteis e nada funcionais. Não é preciso profecia alguma para compreender que o mundo pós-coronavírus será capaz de deteriorar ainda mais a própria ideia por trás da União Europeia. De modo bastante interessante, embora não surpreendente, a “comunidade europeia”, no momento de sua maior crise desde a Segunda Guerra Mundial, mostrou-se uma farsa, à medida que países como Itália e Espanha recorriam a China e Cuba por socorro, e não à Alemanha, França ou Holanda.
É bastante irônico que as próprias forças que tanto promoveram a globalização econômica – e zombaram de países relutantes a tanto – são as mesmas que agora defendem com enorme afinco a soberania, o isolacionismo e o nacionalismo.
Isso é precisamente o “interregno” citado por Gramsci. No entanto, não devemos ignorar o fato de que esse vácuo político não pode ser preenchido somente pela boa vontade, pois qualquer mudança verdadeiramente sustentável e duradoura só pode ser alcançada como resultado de grave reflexão, capaz de manter em foco a natureza dos conflitos futuros e nossa posição moral e ideológica em resposta a tais conflitos.
Tais celebridades da filosofia decerto não representam, tampouco têm o direito para falar em nome das “classes subordinadas” – seja em âmbito local ou global. O que é preciso, em seu lugar, é reagir à “hegemonia cultural”, com base nas lutas dos verdadeiros representantes de sociedades oprimidas, como as minorias unidas em solidariedade mútua, as nações oprimidas e assim por diante; contudo, cientes da oportunidade histórica e dos desafios à frente.
Um sintoma distinto do “interregno” é o desligamento palpável demonstrado pelas massas em relação a ideologias tradicionais – um processo que começou muito antes da pandemia de coronavírus.
“Caso a classe dominante perca seu consenso, isto é, não ‘lidere’ mais e seja meramente ‘dominante’, ao exercer somente a força coercitiva, isso significa precisamente que as grandes massas tornaram-se desligadas de suas ideologias tradicionais e não mais crêem naquilo que acreditavam antes”, detalhou Gramsci.
Notoriamente, há um problema com a verdadeira representação democrática em todo o mundo, devido à ascensão de ditaduras militares, como no Egito, ou ao populismo de extrema-direita, como nos Estados Unidos, diversos outros países ocidentais, Índia, assim por diante.
Com tudo isso em mente, contar apenas com a “confiança nas pessoas e na ciência” – como prescrito por Zizek – não será capaz nem de “reinventar o comunismo”, nem de restaurar a democracia e muito menos de redistribuir riquezas de modo justo e igualitário entre as classes. É desnecessário dizer que tamanha “confiança” é incapaz de dar fim à ocupação israelense ou solucionar de modo humano a crise de refugiados internacional.
De fato, o contrário é verdade. Sob o pretexto de controlar a propagação do novo coronavírus, diversos governo impuseram na prática medidas autoritárias cujo único objetivo é fortalecer seu apego ao poder, como no caso da Hungria e Israel.