José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Amado pelo público, consagrado pelos críticos e considerado gênio por compositores da estatura de Heitor Villa-Lobos e Antônio Carlos Jobim, Pixinguinha é nome referencial da música popular brasileira.
Ao longo de uma carreira que se estendeu por mais de 60 anos, Alfredo da Rocha Vianna Filho (1897-1973), tal era o seu nome civil, produziu centenas de composições, dentre elas, o clássico Carinhoso (1916-1917).
Pixinguinha foi um instrumentista virtuoso (flautista e saxofonista), maestro, arranjador e compositor. E sua enorme originalidade e criatividade musical é o fio condutor do livro Pixinguinha ou la singularité d’ une écoute: du choro à l’ industrie du disque , de Virgínia de Almeida Bessa, que acaba de ser publicado na França com apoio da FAPESP.
“A ideia central do livro é que Pixinguinha tinha uma ‘escuta aberta’, incorporando de forma singular referências sonoras e musicais de diferentes origens e tradições: a música urbana do Rio de Janeiro; a rítmica africana dos terreiros de candomblé, que ele frequentava como ogan [pessoa que exerce diversas funções masculinas nas casas de santo, dentre elas, a de tocar o atabaque durante os rituais]; o jazz; ou a música latino-americana [tango, rumba, habanera]”, disse Bessa à Agência FAPESP.
Agora concluindo seu pós-doutorado na França, com Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior da FAPESP, ela estudou a trajetória de Pixinguinha em seu estudo de mestrado.
“Apresentei a dissertação de mestrado em 2006 no Departamento de História da Universidade de São Paulo. Em 2008, o trabalho foi laureado no concurso Sílvio Romero e, em 2010, recebeu o Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música. O prêmio me possibilitou publicar a dissertação em livro naquele mesmo ano. Saiu com o título A escuta singular de Pixinguinha – História e música no Brasil dos anos 1920 e 1930. É esse livro que foi traduzido e publicado agora na França”, disse Bessa.
A publicação contempla o grande interesse do público francês pela música popular brasileira. A MPB é executada regularmente em rádios, shows e bares na França. Muitos artistas brasileiros cantaram ou tocaram em palcos franceses, entre eles, o próprio Pixinguinha, que viajou para Paris com os Oito Batutas em 1922, e lá se apresentou com um casal de dançarinos de maxixe, Duque e Gaby. “Foi na França que ele se familiarizou com o saxofone, fazendo deste o seu segundo instrumento, depois da flauta”, disse Bessa.
É claro que, mais de 90 anos depois, o nome Pixinguinha continua conhecido apenas nos círculos de aficionados. Um dos objetivos do livro agora publicado é justamente ampliar o rol dos conhecedores. Para isso, a obra informa onde os leitores podem acessar e escutar grande parte das composições e arranjos mencionados. Trata-se do portal “Entre a Memória e a História da Música”, que disponibiliza o acervo de discos de 78 rotações do Instituto Moreira Salles (IMS). O endereço é www.memoriadamusica.com.br/pixinguinha.
O livro trata da vida e da obra de Pixinguinha, tendo como pano de fundo a cultura urbana do Rio de Janeiro no início do século 20, com sua hierarquia social, suas expressões de divertimento e seus músicos populares. Mas, uma vez definido esse amplo painel, aprofunda-se em um aspecto menos explorado da biografia do mestre: seu trabalho como arranjador para a indústria fonográfica.
A “escuta aberta” de Pixinguinha transparece nos arranjos que produziu, sintetizando diferentes influências e criando soluções extremamente originais.
“Dizia-se na época que todo cantor que quisesse se tornar famoso no Brasil devia gravar uma música com arranjo de Pixinguinha. Ele fez arranjos muito famosos, como o de ‘O teu cabelo não nega’, de Lamartine Babo, cuja introdução, que foi uma criação dele, acabou sendo incorporada à canção”, disse Bessa.
Um aspecto importante da biografia de Pixinguinha, que ressalta sua genialidade, é que ele foi praticamente um autodidata, obtendo com um mínimo de formação um máximo de resultados.
“Ele foi aluno de Irineu de Almeida, tocador de oficleide, instrumento de metal grave, espécie de antecessor do saxofone. Almeida ensinou-lhe rudimentos de harmonia e composição, mas não de execução da flauta. Isso ele aprendeu nas rodas de choro do Rio de Janeiro. E tornou-se um virtuose, como pode ser notado na gravação ‘Urubu’, um dos exemplos musicais citados no livro”, disse Bessa.
“Como compositor, Pixinguinha logo se diferenciou dos contemporâneos pela inventividade melódica. Essa inventividade também pode ser aferida em outro exemplo analisado no livro, o choro Um a zero. Com base em um pequeno motivo melódico, que mimetiza o som de uma gaitinha que escutou na comemoração do gol brasileiro em jogo contra o Uruguai, ele construiu frases musicais de grande inventividade melódica e complexidade rítmica”, disse a pesquisadora.
Branqueamento do rádio
Pixinguinha começou a trabalhar como arranjador no teatro musicado. Em 1926, integrou, como maestro e arranjador, a Companhia Negra de Revistas. E, dois anos mais tarde, foi contratado como arranjador pela gravadora Victor (depois incorporada pela Radio Corporation of America, como RCA Victor). Também compôs arranjos para a gravadora Odeon.
“Foi nesse final dos anos 1920 que a tecnologia de gravação elétrica chegou ao Brasil. Até então, a gravação era mecânica”, disse Bessa.
A partir da segunda metade dos anos 1930, Pixinguinha começou a ser “esquecido” no meio musical brasileiro. O posto de grande arranjador passou então para Radamés Gnattali, maestro da Rádio Nacional e também funcionário da Victor.
“Nos anos 1940, surgiu a ideia de que Radamés, apenas nove anos mais novo do que Pixinguinha, representava a modernidade musical, enquanto Pixinguinha era um músico ‘das antigas’, depositário das ‘velhas tradições’. Contribui para isso o radialista Almirante, que idealizou o programa de rádio ‘O Pessoal da Velha Guarda’, tendo Pixinguinha como estrela”, disse Bessa.
Segundo ela, esse processo de “museificação” afetou vários músicos negros. E, segundo Bessa, foi causado por uma estratégia de branqueamento do rádio. Enquanto o rádio era considerado um meio moralmente duvidoso, os artistas negros tiveram bastante espaço. Mas, quando o rádio se consolidou como veículo, proporcionando a seus integrantes enorme popularidade e caminho seguro para a ascensão social, os negros foram postos de lado. Não ostensivamente. Mas na base do “jeitinho brasileiro”.
Esse relativo ostracismo não foi indolor. E, a partir de 1953, em um Brasil que encarava o alcoolismo com muita condescendência, principalmente no meio artístico, Pixinguinha tornou-se frequentador diário da Whiskeria Gouveia, na Travessa do Ouvidor, no centro do Rio.
“Sob o aspecto memorialístico, ele começou a ser resgatado ainda nos anos 1950, pela Revista da Música Brasileira, de Lúcio Rangel. Em 1966, gravou, no Museu da Imagem e do Som (MIS), o primeiro de uma série de depoimentos de músicos realizados pela instituição”, disse Bessa.
Na esteira do grande movimento de revitalização da música brasileira iniciado pela Bossa Nova, Pixinguinha foi “redescoberto”. Participou de gravações, shows e festivais. Recebeu homenagens. Em 1974, um ano depois de sua morte, a escola de samba Portela levou à avenida o enredo “O mundo melhor de Pixinguinha”, e conquistou com ele o vice-campeonato do carnaval carioca.
Gravações de época de composições ou arranjos de Pixinguinha podem ser acessados em www.memoriadamusica.com.br/pixinguinha.
Detalhes biográficos e um rico acervo fotográfico estão disponíveis em https://pixinguinha.com.br/vida.
Pixinguinha ou la singularité d’ une écoute: du choro à l’ industrie du disque
Autora: Virgínia de Almeida Bessa
Tradutora: Marjorie Yerushalmi
Editora: Presses universitaires du Midi
Ano: 2019
Páginas: 286
Preço: € 25
Mais informações: https://livre.fnac.com/a13420396/ALMEIDA-BESSA-VIRGINIA-DE-Pixinguinha-ou-la-singularite-d-une-ecoute.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.