Dia 02 de novembro, Dia de Mortos, data tão comemorada no México – que remete à nossa memória, que remete aos ancestrais. O dia em que o portal entre vivos e mortos se abre. Inicia o 8º Fórum Social Mundial de Migrações na capital do país – mais precisamente em Tlatelolco, lugar conhecido pelo massacre de estudantes a mando do Estado em 1968.
Tlatelolco também foi palco da batalha colonial. Hoje há uma área cercada que contém as bases do que antes eram sólidas construções do povo Mexica. Templos ancestrais. Ao lado, uma igreja que mais parece um forte medieval. Quase isso: a igreja foi construída com as pedras dos templos destruídos, e de fato serviu de forte para os espanhóis nas batalhas coloniais – e de fato foi ponto estratégico de franco-atiradores do exército em 1968, quando o governo massacrou o movimento de estudantes às vésperas das Olimpíadas que se realizaram no país.
Cidade do México, em que uma civilização foi subjugada, em nome da cruz, por meio da espada. A igreja usada como base militar contra os povos locais. Que resistiram. Que resistem. Existem. E a catedral, no zócalo, imponente praça central da cidade construída sobre outra cidade que já existia, sucumbe, afunda centímetros a cada ano. Do solo dela desponta uma pirâmide. O passado vivo que emerge, as estruturas coloniais que desmoronam. É impossível soterrar o passado.
Nos enterraram, mas esqueceram que somos sementes. Como os 43 de Ayotzinapa.
Não bastasse a violenta invenção da América e a imposição sangrenta de uma outra civilização, os terremotos. Outra tragédia em Tlatelolco. 1985, o ano em que milhares de pessoas morreram nos prédios que caíram ao redor da praça sob impacto dos históricos tremores. Tragédias em que eventos naturais revelam injustiças sociais. Precariedade. Especulação. A lógica antinatural da colonização, que construiu a capital da colônia em cima de um lago. A cidade treme. Desmorona. E os mais afetados são os mesmos de sempre. Os “índios”. As mulheres. Os pobres.
Tlatelolco, lugar hoje denominado oficialmente como “praça das três culturas”, encontro do México ancestral, do México colonial e do México moderno. Violentos encontros. Histórias que brotam da terra, que reencarnam.
Memória viva, como a das mães centro-americanas que carregam fotos dos seus familiares desaparecidos: migrantes perseguidos, ou ignorados, pelas autoridades. Mas não esquecidos por elas. Jamais por elas. Que caminham todos os anos da América Central até o México, fortalecendo em comum a busca por seus desaparecidos. Exigindo a verdade, exigindo responsabilidade, exigindo justiça.
Esse ano elas se encontraram com mulheres de outras partes do mundo na Cúpula de Mães de Migrantes Desaparecidos que aconteceu paralelamente ao Fórum Social Mundial de Migrações.
A caravana delas nao foi a única. Milhares de centroamericanos passavam pelas fronteiras mexicanas durante o Fórum. Dessa vez, como em outras levas de migração coletiva, eles não se escondem. Exigem coletivamente seu direito de migrar, expõem essa problemática tão presente, tão real, que a política oficial insiste em querer enterrar. E assim, cada vez mais, brota. Deita raízes. Espalha sementes. Se multiplica.
Pessoas que fogem da guerra, da violência de máfias e milícias, da pobreza, da falta de perspectiva. Povos subjugados que fogem de lugares historicamente explorados – fontes de matéria prima, de mão de obra barata. Que vão se arrastando, cada vez mais cansados, com crianças doentes, contando seus mortos. Que enfrentam muito preconceito, muita violência. Só na passagem pelo estado de Veracruz, antes de chegar à Cidade do México, 100 migrantes foram desaparecidos. Depois de esperarem os ônibus que o governo local havia prometido, e que nunca chegaram. Descaso. Planejado. Crônico. Oficial.
Na capital, organizações tentam fazer o que o Estado não faz. Coordenam abrigos, doações. A precariedade predomina. Aproveitadores se infiltram. E os migrantes tratam de sobreviver. E caminhar. E se organizam. Fazem suas assembleias. Não há um líder, um movimento, uma sigla que os represente.
Uma multidão que migra.
Na praça de Tlatelolco – símbolo da violência da conquista e da resistência indígena, da recusa a desaparecer, a se deixar assimilar -, as novas dinâmicas de colonização e resistência são representadas. Uma comunidade de Chiapas, estado do sul do México, o mais indígena do país, encena a tragicomédia da migração. A apresentação teatral começa em tzotzil, sua língua materna, e, à medida em que os protagonistas migram da comunidade para a cidade, se castelhaniza.
Placa pelos caídos de 2 de outubro
Um drama real que fala de dificuldades econômicas, burocráticas, com a polícia; de preconceito e da impossibilidade de comunicação na cidade, onde as lógicas indígenas são desconsideradas, e os migrantes, humilhados. Os abismos culturais que, de tão absurdos, são representados como comédia.
As lógicas, os saberes, as vestes e os idiomas resistem. Insistem em existir.
Em meio à multidão migrante, algumas especificidades. Indígena. De gênero. O que é ser mulher migrante? Estar ainda mais sujeita a assédios, violências, feminicídios, tráfico de pessoas, prostituição. O impacto que a migração de mulheres deixa aos que ficam. O impacto da violência à mulher migrante em seus filhos. Crianças encarceradas. No México. Nos Estados Unidos.
São muitas as violências que atravessam esses corpos que migram. E, no fundo, no fundo, somos todos migrantes. A humanidade migra. Pelos oceanos, pelas trilhas, pelo Estreito de Bering. Como refugiado. Como invasor. Colonizador. Somos o resultado de migrações históricas. De injustiças históricas. Das lutas dos nossos ancestrais. E seguimos migrando. Alguns, com privilégios, com projetos de dominação. Outros, fugindo de violências. Sonhando. Sobrevivendo.
Até que migrar seja reconhecido, e garantido, como direito humano fundamental. Afinal, ninguém é ilegal.