Por Soraya Misleh e Fabio Bosco
“Quer queiram os antissemitas e os antissionistas, Israel representa uma democracia onde a democracia não vigora.” É trágico não se espantar mais com o fato de o autor da frase ser um deputado identificado com a esquerda brasileira. Tratando-se de Jean Wyllys (PSOL-RJ), infelizmente é o caso. Ele proferiu a declaração em entrevista à Fierj.TV (canal da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro), em 21 de fevereiro. Na data, o deputado participou de palestra na Congregação Judaica do Brasil (CJB) e novamente destilou desconhecimento, arrogância e preconceitos com relação ao mundo árabe. Na contramão da solidariedade ao povo palestino, que enfrenta limpeza étnica há mais de 67 anos, reiterou ainda sua posição contra a campanha de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) a Israel. Reproduziu, em contraponto, a proposta de diálogo com a “esquerda progressista” israelense, cujas características já foram elucidadas no artigo “Contra a solidariedade que precisamos, Jean Wyllys e a esquerda sionista”.
Numa afirmação que faz tremer quem luta por um mundo justo, frisou na entrevista que a esquerda precisa romper o dogma de que a Palestina é “o mocinho” e Israel, “o vilão”. Assim, demonstra que os anos de militância junto à esquerda não lhe serviram para aprender o básico: ser neutro diante do apartheid e colonização é colocar-se ao lado do opressor. Sob essa retórica, Jean Wyllys reproduz a desgastada propaganda dos ocupantes de terras palestinas, confundindo antissemitismo e antissionismo e reivindicando Israel como a democracia em meio a povos que não compartilham desse valor. Uma visão que o intelectual palestino Edward Said denominou orientalista, ao contrapor um Oriente de “bárbaros” a um Ocidente “civilizado”.
Sua atitude espelha preconceito que leva à desumanização dos palestinos. O exemplo maior é o que o deputado negou-se a enxergar em sua visita à Universidade Hebraica de Jerusalém. Jean Wyllys fechou os olhos para os bairros árabes vizinhos ao campus em território ocupado, nos quais é acelerado o processo de limpeza étnica por parte de Israel. Seria impossível não ver pelo menos um deles: al-Issawiyeh (confira em https://www.youtube.com/watch?v=2EVWtVyzqlY).
No local, em 17 de fevereiro último, em nova investida israelense, áreas agrícolas foram destruídas pelas forças de ocupação. Estradas de terra utilizadas pelos camponeses foram arruinadas, celeiros demolidos, oliveiras e ciprestes arrancados. O terreno está localizado em área que consta do plano denominado “11092”, cujo objetivo é criar um parque nacional israelense, mediante usurpação de 70 hectares de terras palestinas nos bairros de al-Issawiyeh e al-Tur, em Jerusalém Leste. O conselho israelense de planejamento ordenou sua suspensão em setembro de 2014, mas afirmou em seguida que mantê-lo não era “ilegal”: o plano continua em execução ali e nas diversas localidades vizinhas.
A iniciativa integra a política de desarabizar a região, em curso no local desde a ocupação militar israelense de 1967 – assim como foi feito em outras áreas palestinas, a partir de 1948, ano da criação do Estado de Israel (a nakba, catástrofe palestina). Relatório publicado em 2014 pela Al-Maqdese for Society Development revela que entre 2000 e 2014 foram demolidas 1.342 casas e estabelecimentos comerciais, o que resultou na expulsão de 5.760 palestinos, incluindo 1.506 mulheres e 3.031 crianças.
Jean Wyllys ignorou as medidas draconianas de punição coletiva por Israel em curso, também na região onde se localiza a universidade. As ordens de expulsão emitidas pelas forças de ocupação a Samer Abu Eisheh e Hijazi Abu Sbeih, de Jerusalém, são emblemáticas dessa ação e da resistência heroica da nova geração de palestinos, que dá cores à nova Intifada (levante popular) desde outubro último. Ambos recusaram-se a deixar sua terra. O jornalista Gabriel Huland conta: “Os dois jovens receberam em suas casas, sem maiores explicações, notificações segundo as quais deveriam abandonar a cidade em poucos dias. Em lugar de obedecer e deixar suas famílias, amigos e trabalho, disseram não, basta, e ficaram. A Cruz Vermelha negou a eles autorização para ficarem no local e os jovens decidiram montar um acampamento-protesto no pátio do edifício. Tivemos o prazer de falar com eles durante uma atividade cultural organizada por suas famílias (…). Há alguns dias, os dois valentes foram presos.”
Enquanto Jean Wyllys fala sobre democracia israelense, o que se vê é a sanha colonialista de um estado fundado na limpeza étnica do povo palestino. Em apenas seis semanas de 2016, 404 palestinos foram expulsos de suas terras na Cisjordânia – incluindo 215 crianças –, número que equivale à metade do total de 2015. Entre 1º de janeiro e 15 de fevereiro, 283 casas foram demolidas. Ainda neste mês, um jovem palestino foi assassinado por Israel com mais de 50 tiros no portão de Damasco, em Jerusalém.
Não obstante, os palestinos resistem. Ali pululam heróis, como Samer e Hijazi. Como também o palestino de al-Issawiyeh, Samer Al-Issawi, que se tornou conhecido mundialmente por protagonizar uma das mais longas greves de fome nos cárceres israelenses, de 287 dias. Samer Al-Issawi foi solto em troca de prisioneiros e seis meses depois, Israel tomou-lhe novamente a liberdade. Atualmente, ele e dois irmãos encontram-se nos cárceres de Israel. Ele integra os mais de 600 palestinos (do total aproximado de 7 mil presos políticos) em detenção administrativa por Israel – ou seja, sem qualquer acusação formal, com a prisão renovada de seis em seis meses arbitrariamente, sem julgamento.
Al-Issawi chegou a anunciar nova greve de fome, em solidariedade ao jornalista palestino Mohammed Al-Qeeq, que ficou 94 dias sem se alimentar, até arrancar acordo por sua liberdade. Uma mostra da generosidade e coragem do povo oprimido. Algo que Jean Wyllys deveria aprender.