Marcus Vinicius, um prefácio

“Neste momento, milhões de pessoas no mundo, na América Latina e especificamente no Brasil estão sendo arrancadas das suas terras, dos seus lugares de pertencimento, dos mundos construídos coletivamente prenhes de sentidos, de afetos e de memórias para darem lugar à edificação dos monumentos infraestruturais do desenvolvimento, nacionais e regionais. Infraestruturas sempre urgentes, sempre insuficientes para as velocidades e para a fluidez reclamadas pelos processos do desenvolvimento capitalista, de modernização e do aprofundamento da tecnificação das nossas existências.

Processos estes, raramente não alimentados desde as burocracias estatais – supostamente vinculadas ao dever de zelar pelo bem estar público – que abusam da ideia de que alguns podem ser prejudicados para que “uma maioria” seja beneficiada. Argumento de maioria, quase sempre, encobridor dos reais interesses que subjazem a estes megaempreendimentos.

No entanto, quando isto acontece significa que somente se tornou possível porque foram antecedidas por operações e procedimentos nas quais estes “desplazados” magicamente já haviam perdido a sua condição substantiva de pessoas, de sujeitos humanos, para engrossarem os volumosos cadernos dos projetos técnicos, planilhas de cálculos, nos quais figurarão como meras representações alfanuméricas, cálculo de riscos, cifras indenizatórias, obstáculos operacionais. O aspecto fundamental do conjunto de atos técnicos que precedem às operações propriamente ditas é que eles visam apagar qualquer vestígio que possa nos fazer recordar que essas incidências brutais e essas violências se abatem sobre seres marcados pela condição humana, sobre pessoas de carne e osso, portanto, passiveis de sofrimento. Isso significa que antes agiu o frio império das racionalidades técnicas e políticas e a “força da grana que ergue e destrói coisas belas”.

Mais do que desalojadas de suas propriedades, muitas vezes de legalidades precárias, estas pessoas são desarraigadas, desenraizadas dos solos desde os quais se constituíram como sujeitos no mundo, com seus afazeres, suas tradições, relações de vizinhança, projetos de existência. Mundos completos, inteiros como as abobadas celestes que os recobriam, com suas estrelas e constelações. Mundos de cheiros, regimes climáticos em suas micro oscilações; de delimitações dos espaços sagrados e dos espaços profanos, dos vivos e dos mortos, dos lugares possíveis para os homens, mulheres e crianças, de fecundos imaginários e sonhos, que, uma vez perdidos, deixam àqueles que os perdem desnorteados e incertos, em luto ou em luta. E aos que se veem assim, desnorteados e espoliados, espoliados e desnorteados, nada resta senão se lançarem, raramente em condições favoráveis, aos esforços de reconstrução do mundo.

Com Pedra do Cavalo – barragem que iniciou sua construção em 1979 represando o heroico Rio Paraguaçu logo acima da não menos heroica e centenária cidade baiana de Cachoeira – não foi diferente, nos mostra Fernanda Vidal. As mesmas lógicas de Estado, os mesmos imperativos políticos, os mesmos modos elitistas de operação – favorecidos e agravados pela conjuntura de uma ditadura militar, ainda que agonizante – o mesmo autoritarismo, que traduzem geralmente um profundo desprezo dos “grandes” do país, pelo destino e sorte – ou o azar – de uma parte da nossa gente, a quem Darcy Ribeiro nomeia como os “Ninguéns”. Gente simples produzida sempre em quantidades, mas sem atribuição de valor ou de qualidade humana que mereça consideração.

Pessoas-sujeitos que nunca tiveram voz durante todos aqueles anos de incerteza e de tantas atribulações, mas que, quando distanciados no tempo, são convocados a revistarem a sua experiência, a relatarem as suas lembranças – como engenhosamente descobriu a pesquisadora, fazia disparar a capacidade de falar – surpreendem ao revelarem a riqueza de uma vida vivida que, se nunca foi fácil, foi a vida possível, empreendida junto com outros tantos iguais: saudade sim, tristeza não!

O pouco usual neste caso fica exatamente por conta da sensibilidade da autora, que psicóloga se lança num empreendimento sociológico, mas sem perder jamais aquele ponto de vista que busca compreender que a todo processo social objetivo corresponde à construção de modos subjetivos de existir, de sentir, de interpretar e expressar as condições da encarnação humana nas teatralizações que a história comporta. E dentre os elementos materiais das existências, durante muito tempo a disciplina psicológica tem negligenciado essas categorias localizadoras do espaço, do território, do lugar, da terra.

Mais do que a relevante denúncia da questão fundiária como matriz de um sem número de problemas enfrentados pela sociedade brasileira, a sensibilidade do trabalho que o leitor tem em mãos nos remete à “questão da terra” enquanto potencialidade elucidativa não apenas de nossas dinâmicas sociais, mas também de uma interrogação que é dirigida à própria Psicologia, enquanto uma disciplina, sobretudo quando à questão da terra se conjuga o ausente e desconhecido tema da “propriedade” bem como do seu papel na conformação dos sujeitos sociais.

Como lembra-nos Marx, em uma célebre e inspiradora passagem que poderia ser fonte de um fecundo diálogo das ciências sociais com a psicologia, a “propriedade”, mais do que nos sentidos vulgares de um corrompido possuir, “significa pertencer a uma tribo (comunidade) (ter sua existência subjetiva/objetiva dentro dela) e, por meio do relacionamento desta comunidade coma terra, com o seu corpo inorgânico, ocorre o relacionamento do indivíduo com a terra, com a condição externa primária de produção – porque a terra é, ao mesmo tempo, matéria prima, instrumento de trabalho e fruto – como as pré-condições correspondentes à sua individualidade, com o seu modo de existência”. Portanto, ainda que muitas vezes despercebido, a questão da terra e da sua posse – radicalmente os sete palmos mínimos em que o corpo cansado possa se deixar cair para uma noite de sono ou para o sono eterno – constitui o substrato sobre o qual a vida se reproduz; sempre marcada pelas relações de vizinhança, de vinculações, do estabelecimento de um local “físico-social” que nos constitui em nossa humanidade.

Fonte fundamental para iluminar as reflexões sobre a sustentação ontológica dos sujeitos, a espacialidade, que é física e humana ao mesmo tempo, se constituí na cobertura dos lugares pela matéria da qual são feitos os sonhos, as memórias, as emoções e se ligam aos ciclos do desenvolvimento humano que intercalam o desenvolvimento que unem o nascimento e a morte. Porém, a beleza que nos anima enquanto humanos está em perceber que, por mais que nos custe – e são estes custos que merecem ser melhor “negociados” –, somos uma espécie adaptativa capaz de produzir reconstruções no plano material e no humano, das sociabilidades e convivencialidades, registrando as boas e piores condições nas quais isto pode ser feito, quando a natureza é alvo da intervenção intencional do homem e resultante das relações políticas e de dominação. Com habilidade e sensibilidade o presente trabalho condensa no seu título, que a despeito das dramáticas condições nas quais isto pode ser feito isto pode ser revisitado e lembrado sim, mas com as devidas contenções emocionais que a história nos ajuda a produzir: “Saudade sim, tristeza não!” (Marcus Vinicius de Oliveira Silva, 11 de novembro de 2014)

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