Amor à segunda vista

Foto: The big mother

A obra de Patricia Piccinini é um enigma a ser decifrado por cada um de nós. Se em um primeiro momento nossa reação é de repulsa ou de estranhamento diante dessas esquisitas criaturas, em um segundo instante a artista consegue fazer aflorar um sentimento de empatia ao nos colocar diante do olhar profundo de cada um desses seres, promovendo, de maneira surpreendente, um encontro entre algo tão estranho e nossos melhores sentimentos.

Patricia fala de criaturas imaginárias, fantásticas, mas sua pesquisa também se baseia na ciência genética e na análise do comportamento humano. Sua obra explora a incerteza entre o futuro geneticamente modificado e a imaginação livre do sonho coletivo, os medos, os fascínios do inconsciente de todos.

A artista usa técnicas do cinema, da escultura e da animação e as mistura com conhecimento científico para produzir imagens tridimensionais de seres que até podem nos parecer surreais hoje, mas com os quais, com o passar do tempo e com a convivência, poderíamos nos acostumar – fenômeno que, aliás, já ocorreu tantas vezes, sempre que o novo se apresenta de forma surpreendente para nós, e é, rapidamente, absorvido e transformado em “normalidade”.

Na vida, algumas coisas, uma vez feitas, não podem ser desfeitas. Uma vez criadas, não podem mais ser contidas. E isso acontece tanto com a arte quanto com uma criatura geneticamente modificada – e aquele que acha que pode controlar suas criações está se enganando: assim que saem de nossas mãos, elas ganham vida própria.

O que aconteceria, então, se fôssemos capazes de criar máquinas com genes? E se essas máquinas, extremamente duráveis, se transformassem em seres com vontade própria, com sentimentos e essências orgânicas dentro de si? Reunimos um grupo de obras que traz à vista essa possibilidade (e, em oposição ao conceito de biônico, essa é uma proposta de criação mecânica orgânica). A fascinação dos seres humanos por suas máquinas pode fazer com que um dia eles desejem transformá-las em seres vivos. Essas máquinas poderão, a partir daí, encontrar formas de expressão de sentimento e de singularidade, e irão, assim, se descolar da máquina e se aproximar do humano.

Nessa tentativa de humanizar tudo, podemos quebrar uma linha que divide o lugar das coisas e o lugar dos homens. Recentemente, a discussão em torno dos biocombustíveis explicitou essa relação, quando, pela primeira vez na história, tivemos que decidir se um grão alimentício deveria ser usado para alimentar uma pessoa ou produzir combustível para uma máquina.

A verdade por trás desse dilema é que a fome da máquina é muito mais insaciável do que a fome humana – algo que pode nos tornar ainda mais vulneráveis diante de nossas criaturas.

Uma outra hipótese: e se pudéssemos criar seres para nos substituir em tarefas “mundanas” como amamentar nossos filhos, colocá-los para dormir, dar-lhes carinho, enquanto nos ocupamos com tantas outras coisas importantes da vida moderna? E se pudermos delegar o amor e a procriação para um objeto, como uma bota feminina, que é o que ocorre na obra Boot Flower? Ou nos permitir entender que, em um mundo ocupado por esses novos seres, os estranhos somos nós, como no vídeo The Gathering? Podemos nos perguntar, ainda, quem é o ser que está deitado no colo do menino de The Long Waited. Seria ele um ancestral do menino ou o inverso? O que há em comum entre eles é que ambos compartilham uma face humana em corpos distintos, e ambos demonstram um carinho tão familiar.

Entrar no CCBB será como entrar em um lugar onde a convergência entre ciência e consciência aconteceu, um lugar onde o tempo se fundiu e o passado e o futuro coabitam lado a lado, onde a imaginação se libertou e passamos a ser agentes e pacientes das transformações que um dia iniciamos – a maior de todas as transformações: a de nosso DNA.

Para visitar esse lugar, é preciso entender e aceitar que ele tem suas próprias regras, já que as regras de nossa ciência, transitória, são insuficientes para explicar o que aqui acontece. Ainda assim, ficará claro para os visitantes que, dentro de toda essa aparente anormalidade, uma essência humana permanece latente e a possibilidade do amor ainda existe. Depois de rejeitar essas criaturas, aprendemos com elas e nos damos uma segunda chance. Vemos, então, que é possível existir o amor à segunda vista.

Marcello Dantas, curador

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