O Feminismo no debate político partidário

Partido que funciona como movimento? Ou Movimento que funciona como partido?
Provocadas pela crise de representação política que atola nossas democracias e inspiradas em organizações menos hierárquicas, como os movimentos de esquerda europeus que se tornaram partidos – Syriza, na Grécia e Podemos, na Espanha – duas novas experiências de organização política estão em curso no Brasil: #partidA feministA e RAIZ movimento cidadanista. Vale lembrar que os valores defendidos, inclusive nas formas de organização, são os mesmos princípios do Fórum Social Mundial (FSM), por outro mundo possível e urgente.

Em março deste ano, foi lançada, pela deputada federal Luiza Erundina (PSB) e pelo historiador Célio Turino, a Carta Cidadanista, manifesto para a criação de um novo partido – RAIZ movimento cidadanista. Em maio, a #partidA feminista começou a ser debatida em reuniões no Rio de Janeiro e em São Paulo, chamadas pela mestre e doutora em filosofia, Marcia Tiburi, para a criação de um partido feminista. Com certeza as feministas são a parte da sociedade mais indignada com a conjuntura política e o atual estado dos podres poderes “democráticos” no nosso Brasil. A vida, para a maioria, fica a cada dia mais opressiva, enquanto crescem os privilégios para os mesmos de sempre. Os partidos políticos atuais (com raras exceções) transformaram a política em balcão de negócios e carreira profissional, em algo tão sujo que afasta as pessoas de bem.


Reinventar a Política

“Esses desvios todos da Política são efeitos do esgotamento de um quadro institucional que é mundial”, diz Luiza Erundina, expressando um sentimento comum a todas. “Nem a família como instituição, nem o direito, a economia, os partidos menos ainda, há uma falência do próprio Estado. Temos que reinventar o Estado, reinventar a forma de exercer o poder, a relação com os diferentes, com o divergente”. Fazendo questão de valorizar aquela “experiência que se viveu no passado e que deu conta de um determinado momento da historia”, Erundina diz não querer é “reeditar a velha esquerda. Hoje esses partidos estão todos esgotados”.

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“A gente quer ressignificar o sentido de ‘partido’”, fala Marcia Tiburi (foto acima). “Acreditamos que podemos fazer isso colocando as demandas para uma democracia radical como prioritárias”. Para a professora, que defende a filosofia como instrumento de ação política, o partido daria conta do que chama de “irrepresentabilidade” das mulheres e do feminismo “como ética-política democraticamente avançada. Mas no diálogo que levamos adiante, a questão ‘seremos ou não partido’ tornou-se produtiva no sentido de um movimento. Nosso ativismo tem esse caráter inovador justamente no fato de ser um movimento que funciona como partido”. Para a filósofa, o protagonismo feminista e os direitos das mulheres são o foco para a construção de uma democracia radical. “Enquanto mulheres, negros, indígenas, trabalhadores e excluídos em geral ficarem fora da política, enquanto não incluirmos a natureza nas nossas preocupações, não iremos longe como sociedade”.

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As feministas da #partidA posicionam-se à esquerda, mas ressaltam que o feminismo é uma superação radical do antagonismo direita e esquerda. Construir uma democracia feminista, que se organize para atuar como partido, é o objetivo, diz Bruna Malaquias (foto), 26, jornalista e fundadora da #partidA, segurando a onda da comunicação. “O próprio nome do nosso movimento é uma enorme metáfora, porque não é partido, é partidA, no feminino, e, entre os inúmeros significados do verbo partir, sinaliza que demos a partida, no sentido de uma transformação social radical”. Inês Castilho (foto abaixo), jornalista e feminista atuante desde os anos 70, e (re)engajada no movimento pela #partidA, entende que se “quer ser movimento e partido para questionar o sistema político eleitoral. Coloca-se na perspectiva de tomar o poder – transgressão das transgressões – para mudar a cena sinistra dos parlamentos locais, estaduais e nacional, dominada pelo homem ‘branco, europeu, heterossexual, carnívoro, e senhor de sua própria razão’.”
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Feminismo e ecossocialismo

Também Luiza Erundina faz questão de frisar que é “a RAIZ e não o RAIZ, para garantir a dimensão do feminino como um dos valores que o movimento quer expressar na sua ação política”. A deputada cita a influência do Podemos na construção do projeto, “a idéia de partido movimento e os círculos de base”. Afirma a organização como “de esquerda, mas plural, aberta; e mesmo depois que vier a se tornar partido continuará movimento, a idéia é não ter hierarquia”. “O mundo todo está atento às novas formas de organização política, vinculados a movimentos desgarrados dos velhos aparelhos, representando novos ativismos, com uma práxis renovada e horizontal”, diz um dos trechos do manifesto da RAIZ. A Carta Cidadanista é um longo manifesto que defende a ética UBUNTU, a filosofia do Bem Viver e o Ecossocialismo como raízes do movimento que quer construir um partido para a reconstrução do bem comum e da cidadania plena.

A #partidA vive um processo de construção coletiva, nem sempre fácil, mas rico em potências. O feminismo, enquanto cultura contra hegemônica e revolucionária, deve ser o motor da #partidA, na busca de um poder coletivo, compartilhado e solidário, com as populações desconsideradas nos cenários políticos tradicionais. São muito próximas as análises de conjuntura e as duas estratégias; ambas pretendem pautar-se pela cultura do diálogo, pela defesa da natureza e do Planeta, por novas formas do exercício da Política. Ambos sabem que sempre serão movimentos, em ação junto com outros movimentos, cuja construção será permanente, pois assim é a humanidade, se for realmente democrática; ambas valorizam a cultura da alegria, do afeto, da criatividade, do amor à vida, respeitando a singularidade de cada ser.
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“O mais lindo desse movimento é que ele não nasce com um programa político, não tem lideranças dadas, não nasce filiando pessoas para uma ideia já desenhada”, comemora Élida Lima (foto acima), escritora e fundadora da #partidA – em São Paulo, onde vive, e em Belém, onde nasceu. “Esperamos primeiro que o Brasil inteiro se manifeste, se auto-represente, se auto-denomine feminista” Ela propõe que “não falemos em minorias, mas em setores minorizados”. Retornando animada do Pará, Élida sintetiza o espírito do movimento que aparece em várias cidades do Brasil. “As mulheres, as negras, as índias, são maioria neste país, mas são culturalmente, economicamente, minorizadas pelas estruturas de poder em curso na sociedade. A ideia de uma #partidA feminista é para pensar como ruir com essas estruturas e como nos auto-representarmos de forma mais justa para todas e todos”.
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Luiza Erundina (foto) não gosta da idéia de um partido de gênero. Acredita que o ecossocialismo e o bem viver vão além do feminismo. “O caso da RAIZ é justamente ter uma concepção do socialismo que contempla os direitos da natureza. Além dos direitos da mulher, dos direitos individuais, políticos, civis, há os direitos da Terra. É como se fosse um sujeito convivendo com outros sujeitos e construindo um mundo livre, solidário, plural.” Desde que haja identificação com as ideias da RAIZ, não se veta ninguém, assegura. A RAIZ está em processo de congresso nacional e conta com núcleos em mais de 20 estados. Não querem ser mais um partido para disputar eleição e não terão candidaturas no ano que vem, mas “a gente quer influir no processo em 2016, apoiar projetos com que tenhamos alguma identidade. É necessário um tempo para as pessoas incorporarem essas ideias, essa ideologia, esse novo modo de viver, de conviver e de se relacionar com a natureza”.

Feminismo é debate permanente

Para as feministas, a #partidA, de fato, partiu. Grupos vêm surgindo em diversas cidades pelo Brasil, em todas as regiões, com vários sotaques, de forma autônoma e buscando conectar-se entre si. Na mesma velocidade, aparecem criticas de vários teores, principalmente vindas de feministas. A #partidA está sendo criticada como muito branca, acadêmica, distante da maioria das mulheres, pobre e periférica; também como distante ou até indiferente aos movimentos sociais, inclusive o movimento feminista. Elas também querem influir nas eleições do próximo ano.

Em primeiro lugar, a maioria das mulheres que tem se mobilizado em torno da #partidA já é militante. Bruna Malaquias lembra que “temos essa autocrítica, mas é preciso levar em consideração que a #partidA é um movimento que começou a ser pensado por professoras universitárias brancas, há pouco mais de três meses, isso não implica o que seremos”. Inês Castilho lembra que “São Paulo ferve de movimentos feministas” e como de forma ainda embrionária (não poderia ser de outro modo) a #partidA está em contato com vários desses grupos. “ O feminismo negro passa por uma primavera. Em cada universidade, e em muitos cursos médios, as jovens vêm se unindo para fazer frente às barreiras e opressões do machismo. Impulsionadas pela tecnopolítica, as iniciativas se multiplicam e vêm somar-se a movimentos históricos como a União de Mulheres e Promotoras Legais Populares, ou a SOF e a Marcha Mundial de Mulheres”.

As #partidAs no Brasil são bem diferentes. Belém e São Paulo, por exemplo, conta Élida. “Em Belém é mais negra, mais indígena, mais periférica. Aqueles que identificam na #partidA um DNA branco e elitista estão pensando a partir da lógica colonizadora, onde o Sudeste dita parâmetros para o restante do Brasil, e a lógica que vemos operar no movimento é inversa”. Além disso, continua Inês, “estamos produzindo conhecimento, em contato com teóricas da academia, e é surpreendente quantas há, como mostrou o seminário Feminismo hoje: urgência e atualidade, coorganizado por Dulce Lima, do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, e por Márcia Tiburi”.

Como diz Márcia, “são críticas naturais para quem espera um movimento pronto. A #partidA não é de ninguém e é de todxs. Quem critica talvez não tenha acessado a grande inovação da partidA: ela é uma ideia – totalmente copyleft – que pode ser usada por qualquer grupo de pessoas – feministas – em qualquer lugar, para construir uma democracia radical. Ao mesmo tempo, há muitos movimentos com os quais estamos nos ligando e há muitas feministas clássicas atuando conosco. Acho que esses encontros vão se construindo e vamos nos fortalecendo juntxs. Nós, da #partidA queremos juntar com todxs, queremos nos unir”.

Luiza Erundina, do alto dos seus 80 anos, diz que o importante é que os partidos expressam um determinado momento da sociedade e, se um segmento não se sente representado em nenhuma das organizações políticas, é natural que decida organizar-se. “Estamos numa virada de ciclo histórico social, pois os ciclos vão se esgotando e renovando”, ensina. “O projeto humano também está esgotado, como compreensão de vida coletiva e de valores que devem sustentar a convivência numa coletividade”. Para reverter isto, “só colocando valores opostos aos que levaram a esta situação, e neste sentido o momento é muito rico, sou otimista, vamos reverter a crise também de esperança, estamos numa construção de gestar o novo”.

(Matéria publicada originalmente no jornal Brasil de Fato)

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