Acordos de livre comércio do Norte ameaçam a livre comunicação no Sul global

Desde o ano 2013, a União Europeia e os Estados Unidos estão negociando um possível Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). Os defensores de um tal acordo insistem que seu objetivo é estimular o crescimento econômico de ambas as regiões e baixar os custos de produção para a indústria no Norte. O Parlamento Europeu pronunciou-se a favor do TTIP, mas persistem muitas dúvidas sobre os efeitos reais da abertura de mercados sob o paradigma neoliberal e há muitas críticas sobre as negociações entre a União Europeia e os Estados Unidos, acusando o acordo de pouco transparente e fruto de um lobbying de empresas transnacionais.

“Mas o que me importam os gringos?” poderíamos objetar aqui do Sul. Bom, desde uma perspectiva internacionalista, deveríamos estar solidários aos coletivos e organizações sociais que lutam contra a desmontagem de padrões legais que protegem contratos de trabalho, a saúde e o meio ambiente, os quais serão ameaçados pelo TTIP. Porque sempre é possível exportar as “piores práticas” ao Sul, como, por exemplo, a atual obsessão em introduzir políticas de austeridade no Brasil.

Quando se fala dos efeitos do TTIP para o Sul globalizado, critica-se, sobretudo, que um comércio mais intenso no setor agrário vai ameaçar a existência de pequenos produtores. Países como o Brasil, por exemplo, poderiam ser pressionados pelo agronegócio UE-EUA a cortar o fomento do subsídio de creches e escolas com produtos regionais. Sem dúvida, colocar em risco uma alimentação saudável e sustentável é um problema grande, mas não seria o único. Refletindo sobre os efeitos do TTIP no âmbito da comunicação, rapidamente vemos também os riscos para sistemas de comunicação abertos e participativos, os quais achamos importante compartilhar os seguintes pontos:

1. Uso do espectro

O Conselho Europeu recomendou no ano 2005 para os Estados uma tripartição do espectro, que implica uma reserva de espectro para um uso não-comercial. Nos Estados Unidos, o uso não-comercial do espectro é muito menor e não se garante efetivamente esse espaço. Formando uma área de livre comércio, empresas estadunidenses poderiam se organizar legalmente contra uma tripartição das reservas do espectro recomendadas considerando as barreiras não-tarifárias.

Efeitos para América Latina e Brasil:

Historicamente, os atores não-estatais e não-comerciais no espectro da América Latina sempre foram poucos e os governos com vontade política de terminar com a atual concentração de licenças, já tiveram problemas para conseguir mudanças. Uma das maiores justificativas para reformar os marcos legais na América Latina foi a tradição do serviço público e rádios livres, associativas e comunitárias na Europa. Hoje, na América Latina, a tripartição proposta na Europa é uma realidade na Argentina, Equador, Venezuela, Uruguai e Bolívia, que dividiu em quatro o espectro. Mas o Brasil e outros países ainda estão longe dessa realidade. É certo que no Brasil o artigo 223 da Constituição Federal prevê, assim como em outros países, a complementaridade dos serviços privado, público e estatal. Porém, não se fala explicitamente da mídia comunitária ou livre, e ainda falta uma nova lei de mídia, nesse país com forte herança monopolista sobre os meios. No Brasil, há o registro de mais de 10 mil cidadãos condenados por radiodifusão ilegal, e a denúncia de um monopólio dos meios de comunicação se faz cada vez mais presente entre veículos e movimentos sociais. Porém, um possível desmantelamento das estruturas do setor público e a política setorial da mídia poderia enfraquecer essas articulações também em relação ao que se vislumbra no contexto da digitalização dos meios de comunicação.

2. Digitalização e redes digitais

Possível controvérsia:

Tanto a UE como os EUA já definiram um padrão de rádio digital, na Europa DAB, nos Estados Unidos o HD Radio. O cenário mais provável relacionado ao TTIP é o mútuo reconhecimento de ambos os padrões e a introdução de receptores com multichips. Mas o problema não está relacionado somente ao fortalecimento desses dois padrões digitais (ambos são criticáveis por razões diferentes) senão também com a estreita visão de serviços e redes digitais sem fio: trata-se de modelos verticais, implementados de cima pra baixo sem prever usos digitais do espectro que se baseiam em premissas ligadas a plataformas abertas, participativas e novas propostas de usos não-licenciados (como por exemplo as Redes Mesh sem fins de lucro). A política de mídia do TTIP se orienta para defesa de padrões já estabelecidos e sob as demandas formuladas pelos lobbyistas de empresas transnacionais de telecomunicação.

Efeitos para América Latina e Brasil:

A recíproca introdução dos padrões de rádio digital na UE e nos EUA funcionará como uma promoção pela sua adoção nos países do Sul. Iniciativas como DRM Brasil (drm-brasil.org), por exemplo, que luta pela introdução de uma plataforma aberta, utilizando software livre, de radiodifusão ao nível internacional, enfrentarão uma resistência ainda maior e mais ativa na criação de alternativas. Ao mesmo tempo, o paradigma do mercado que pressiona as atuais redes digitais (GSM, 3G, 4G, etc.) aniquilará as emergentes premissas de uma “outra comunicação digital possível”, como por exemplo a postura da AMARC Brasil, que luta por um reconhecimento de “mídia comunitária em todas as faixas do espectro”, ou também a interessante proposta concreta de um “espectro livre” que propõe o uso não-licenciado e não-comercial de pedaços de todas as faixas do espectro.

No Brasil, o relatório da Comissão de Ciência, Tecnologia e Informação, que orienta a escolha do padrão brasileiro de rádio digital, redigido pelo proprietário de rádio e político Sandro Alex, aponta a escolha de dois padrões de rádio: o HD Radio para a faixa FM e o DRM para as demais faixas (O HD Radio não funciona em Ondas Curtas, e muito mal em Ondas Médias). Assim, a inspiração de um modelo de adoção de dois padrões tornaria mais caro os receptores brasileiros, dificultando o acesso das populações com menor poder aquisitivo e justificando uma escolha desnecessária, já que o DRM funciona bem em todas as faixas de frequência, como previsto na portaria ministerial 290, que institui o Sistema Brasileiro de Rádio Digital.

3. Fomento estadual de cultura, educação e mídia

Possível controvérsia:

Existem temores concretos de que investidores privados poderiam iniciar processos contra entidades culturais, educativas e midiáticas na UE que recebem apoios estatais ou aproveitam de certas restrições do mercado (ex. Pequenas livrarias que sobrevivem graças à venda de livros a um preço único na Alemanha). Caso essas “subvenções” ou “regulações” sejam declaradas ilegais, começaria uma reestruturação institucional sob o paradigma do lucro.

Efeitos para América Latina e Brasil:

Projetos como a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) (assim como diversas iniciativas no setor educativo e cultural) são atores emergentes que ainda estão procurando a sua liberdade política em relação ao governo e também um modelo que garanta sua sustentabilidade econômica. Mais uma vez, perdem credibilidade e legitimidade quando comparados a instituições europeias como a BBC. No caso da radiodifusão, há na França um fundo alimentado por impostos da mídia comercial que garante uma subvenção do setor associativo e comunitário. Essas referências de orientação e de diálogo debilitarão o uso decentralizado e autogestionado de recursos estatais ou fiscais por parte de organizações não-governamentais no setor da comunicação social incidindo sobre a diversidade da mídia.

4. Padrões de segurança na comunicação

Possível controvérsia:

Diferentes organizações europeias (ex. TeleTrusT, BSI) advertem que o TTIP enfraquecerá os padrões de segurança já que as agências nacionais da UE que defendem níveis altos de segurança não participam diretamente nas negociações. Os EUA também promovem uma regulação menos restritiva na circulação de dados pessoais entre empresas e instituições.

Efeitos para América Latina e Brasil:

O Marco Civil da Internet aprovado no ano de 2014 no Brasil foi uma ação concreta para defender um uso amplo, inclusivo e seguro de conteúdos online. A lei estabeleceu algumas normas e tornou permanente o debate acerca da neutralidade da rede, da privacidade e da retenção de dados. Ainda faltam muitas leis secundárias para fazer valer na prática os seus princípios. Considerando que uma zona governada pelo TTIP caminha na direção oposta a esses princípios, trata-se de um movimento que ajudaria aos adversários comerciais da neutralidade da rede ou aos defensores de uma vigilância mais estrita da comunicação social.

Conclusão

Sem conhecer possíveis pré-acordos ou premissas sobre a regulação da mídia e comunicação (as negociações avançam de forma secreta e não-pública) é, porém, previsível que o TTIP coloca em perigo as bases de uma comunicação participativa e não-comercial, tanto no Norte como no Sul. A maneira como fazemos rádio, desenhamos e usamos redes digitais ou fomentamos mídia com recursos estatais não deveria ser influenciada por acordos comerciais. A liberdade de expressão não somente se refere à fala e ao conteúdo da mídia já estabelecidos. A liberdade de expressão se sustenta em uma reflexão constante sobre os meios de comunicação, as suas transformações e convergências, e os seus usos amplos, diversos e plurais.

Talvez a contínua luta de muitos governos e empresas em controlarem e restringir o uso popular do rádio (e outros usos de frequências) seja o melhor exemplo para demostrar que as condições de uma livre comunicação ao nível nacional e internacional se criam ativamente. Rádios livres e comunitárias não caíram do céu, foram ou são defendidas na terra em escala global. E é por isso que um acompanhamento crítico do TTIP é importante também para qualquer pessoa ou organização no Sul que aspira por mais que uma TV comercial em alta-definição.

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