Je suis une femme congolaise

“Quer dizer que não temos guerra? Ande pelo país para ver o que eles estão chamando de paz”. Quem coloca o desafio é a jornalista e ativista congolesa Julienne Lusenge quando comento com ela o que ouvi dizer que os conflitos na República Democrática do Congo (RDC) já estariam sob controle. Julienne é presidenta da Solidariedade Feminina pela Paz e Desenvolvimento Integral (SOFEPADI), organização que defende os direitos das mulheres na conturbada realidade da RDC.

Conturbado, na verdade, é um adjetivo bastante leve para descrever a situação do país que fica no coração da África, é o segundo maior do continente e costuma despertar a cobiça pelo mundo afora por causa de suas riquezas naturais: ouro, cassiterita, diamante e, pelo menos, 20% das reservas mundiais de Coltan,o mineral que alimenta a indústria de eletrônicos no mundo. Se você tem um smartphone, provavelmente, você carrega um pedacinho do Congo no seu bolso.

É a disputa pelos minerais que alimenta a violência e faz da população da RDC uma das mais pobres do mundo. Uma luta sangrenta que já dura mais de 18 anos. Só para se ter uma ideia, pelo menos metade das minas são controladas por grupos armados (veja aqui: http://www.bsr.org/reports/BSR_Conflict_Minerals_and_the_DRC.pdf) . Pior: a maior parte do que é garimpado no Congo atravessa as fronteiras e é comercializado para os países vizinhos, especialmente por Ruanda. Desde o Genocídio de 1994, Ruanda recebeu uma espécie de cheque em branco dos países ricos para invadir o território congolês em busca dos antigos genocidas que cruzaram a fronteira e, de quebra, aproveitou para explorar o subsolo do vizinho. Hoje, Ruanda é um dos maiores exportadores de Coltan do mundo, apesar de não ter reservas do mineral.

Nesse cenário, o corpo da mulher se transformou em um campo de batalha e a violência sexual uma arma de guerra. Uma pesquisa publicada no American Journal of Public Health estimou que, em 2011, 48 mullheres eram estupradas a cada hora na República Democrática do Congo. Uma taxa 26 vezes mais alta que a taxa mundial. 65% das vítimas tinham menos de 18 anos. Pelo menos 10% delas, menos de 10 anos de idade (veja aqui: http://sites.davidson.edu/pol341/wp-content/uploads/2013/02/pUBLIC-hEALTH.pdf). “Não são apenas estupros. É ódio. Muitas vezes praticado na frente da família: filhos, pais, maridos. Toda a sociedade é atingida pela violência”, explica Julianne. As denúncias de Julienne não perdem o contexto econômico: “não se trata de conflito étnico. Quem sustenta a violência são os países como Estados Unidos e Grã-Bretanha. Os governos podem até dizer que não estão mais apoiando o governo de Ruanda. Mas suas empresas continuam comprando nosso minério e alimentando a violência”. As denúncias de Julienne não saem de graça. Ela já sofreu ameaças de morte e retaliações. “Tenho medo, mas não vou me calar”, diz Julienne.

Oficialmente, a República Democrática do Congo não está mais em guerra. Mas o relatório do Conselho de Segurança da ONU, de março de 2015, fala sobre o “o persistente ciclo de conflito e violência praticada por grupos armados, congoleses ou estrangeiros”, calcula que o País tem mais de 2,7 milhões de deslocados e 490 mil refugiados e reconhece que, apesar dos esforços, a violência sexual continua sendo um problema (veja aqui: http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/s_res_2211.pdf_ e aqui: http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/s_2015_173.pdf).

É do alto de quem, desde 1998, vem ouvindo e denunciado histórias de embrulhar o estômago como estupros coletivos, cárceres privados, torturas e mutilações que Julianne refuta a noção de paz: “é verdade que o uso do estupro como arma de guerra já foi maior. Mas não dá para dizer que o problema acabou. O pior é que a violência praticada por guerrilheiros e soldados não foi punida e a impunidade está alimentando uma espécie de epidemia. Depois de quase 20 anos, a violência sexual foi banalizada, está virando um problema cultural. Como se o corpo da mulher estivesse à disposição de qualquer pessoa”, explica Julianne. Pergunto para ela se ela própria já foi estuprada. A resposta soa como um presságio: “ainda não”. Silencio. Ela completa: “ser mulher nesse país é saber que a qualquer momento, em qualquer lugar, você pode ser violentada”.

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Depois de entrevistar Julienne, subo para o quarto do hotel onde fiquei hospedada em Kinshasa, capital da RDC. Hotel com muitas estrelas, na região mais rica de uma cidade que abriga 10 milhões de pessoas, a maior parte delas em favelas precárias. Abro a revista local Impact que está lá para o deleite dos hóspedes. A edição é de março e traz uma reportagem que parece provocação: “Os chargistas congoloses são ‘Charlie’”. A reportagem fala em liberdade de expressão e mostra solidariedade às vítimas do atentado na redação do Charlie Hebdo em fevereiro, na França ((veja aqui: http://www.impact.cd/les-dessinateurs-congolais-sont-charlie/). Fecho a revista. Compreendo o movimento de solidariedade, mas me lembro da contabilidade do genocídio do Congo desde 1996: pelo menos 6 milhões de mortos e 2 milhões de mulheres violentadas. Me pergunto como o mundo trataria essa história se ao invés de corpos africanos estivéssemos falando dos corpos europeus. Viro a noite pensando em como fazer o mundo dizer “Je suis une femme congolaise”.

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