O gol que quase ninguém viu

O pensamento do paraplégico Juliano Pinto conseguiu comandar um exoesqueleto, desenvolvido em metal para dar sustentação ao seu corpo e obedecer ordens neurológicas, e seu corpo biônico caminhou aguns passos e deu o chute inaugural da Copa do Mundo. Mas a mídia oficial da Copa não conseguiu coordenar suas câmeras para que o acontecimento aguardado desde o anúncio, em 2007, de que a Copa seria no Brasil, fosse decentemente transmitido ao público.

A transmissão começou quando o jovem já estava com a bola no pé acoplado ao equipamento desenvolvido pela equipe do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis,professor da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e do Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra (na sigla IINN-ELS) dentro do projeto “Andar de novo”. A câmara registrou o chute e, pouco mais de um segundo depois, voltou-se para outros acontecimentos da festa inaugural, como a chegada do ônibus da seleção brasileira. A parte inicial do movimento não foi registrada.

Para quem estava no estádio, a Fifa também não demonstrou ter dado importância ao acontecimento. Um paraplégico que caminha no estádio não é só significativo para a ciência, mas para todas as pessoas com perda de mobilidade. Nada mais contrastante com o espetáculo do futebol do que a limitação de uma paralisia. Mas a organização reservou menos de um minuto da festa para dar lugar ao golaço da equipe de Nicolelis. Segundo ele, bem menos. Só 29 segundos foram oferecidos pela Fifa. Além disso, o chute foi dado na lateral do campo,e não no centro do gramado, onde poderia ter maior atenção do estádio e das câmeras, além de maior reconhecimento ao seu significado simbólico. Segundo o Comitê Organizador da Copa do Mundo, o ‘pontapé inicial’ foi realizado fora do campo de jogo, porque o peso do equipamento poderia danificar o gramado.

O exoesqueleto projetado para devolver movimentos aos paraplégicos, ideia que Nicolelis acalenta desde 1909, vem sendo desenvolvido desde 2001, e o trabalho ganhou impulso com o anúncio da hospedagem da Copa no país, que levou Nicolelis a comprometer-se em ter o equipamento pronto para o chute inaugural do evento. O lançamento da bola envolveu o trabalho de 156 pesquisadores de vários países, através de um consórcio internacional interessado em transformar a “interface cérebro-máquina” em solução para paraplégicos.

Já na fase final das pesquisas, oito pacientes foram selecionados e se dedicaram aos testes que levaram à escolha de Juliano para colocar a bola em movimento. Ao custo de R$ 33 milhões e 13 anos de trabalho, a equipe conseguiu. “We did it” ( “Nós conseguimos”), Nicolelis, postou, em inglês, no seu Twittter.

A cobertura superficial da Copa

A relação da grande mídia com o futebol da Fifa é determinada pela compra dos direitos exclusivos de transmissão, o que levou, no Brasil, a que apenas as redes Globo BAndeirantes de Televisão pudessem transmitir a abertura e o jogo inaugural no Estádio do Itaquerão. E é a Fifa quem dita as regras do que deve ser transmitido e por quem. Globo e Band transmitiram na TV aberta, e SporTV, Bandsports, ESPN e Fox Sports ficaram com os direitos de transmissão na TV por Assinatura.

Apesar dos investimentos do governo brasileiro na promoção do evento, os contratos firmados não asseguraram que a mídia pública pudesse transmitir os jogos diretamente pela TV, e mesmo as imagens dos gols, de não mais de 2 minutos e 42 segundos, só podem ser retransmitidas 48 horas depois de exploradas pela rede beneficiária dos direitos.

A transmissão do futebol como negócio, sob contrato de patrocinadores, prevalece sobre a cobertura da relação da sociedade com o megaevento esportivo. Deixar de cobrir com o devido interesse os movimentos de Juliano não foi o único vazio nas coberturas da Copa do Mundo, até agora. De fora dos estádios também falta muita informação de qualidade.

Os movimentos que ocuparam as ruas e questionaram os gastos e as imposições da Fifa incomodaram a mídia e os setores conservadores a ponto de exigirem leis contra os manifestantes. A desqualificação dos protestos contaminou também o discurso da mídia pública, apesar da missão de produzir e difundir conteúdos que contribuam para a consciência crítica das pessoas (lema da EBC).

O compromisso assumido pelo jornalismo da TV Brasil, desde que os protestos começaram em junho, foi o de tentar cobri-los de forma a ajudar a sociedade a compreender suas causas. No entanto, na cobertura dos preparativos da Copa, um jornalista da TV Brasil chegou a chamar os professores de idiotas, por atrapalharem com seus protestos o caminho da seleção. Mesmo ao tentar se explicar – cobrado pela EBC a dar voz aos professores -, o profissional não se desculpou por tê-los ofendido, até agora.

No fim, a própria mídia brasileira foi vítima da sua forma de minimizar, desqualificar, criminalizar e ajudar com isso a reprimir os movimentos sociais que roubaram a cena dos adoradores da Fifa.

No dia da abertura do mundial, em São Paulo, jornalistas da Rede CNN foram feridos pela polícia. No Rio de Janeiro, um jornalista da Agência Reuters sofreu traumatismo craniano, atingido por um objeto, lançado não se sabe por quem. E ferida pelos acontecimentos, ainda pode demorar até que a mídia descubra que a motivação das pessoas em ocupar a cena para mudar as coisas também deve ser pauta do seu jornalismo. E não apenas os ônibus incendiados nas ruas e os momentos de glória da seleção.

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