Perguntar-se sobre a colonialidade do poder, no contexto da mundialização, obriga a não esquecer que, de um lado, suas raizes devem ser buscadas a bordo dos navios negreiros, nas plantações, nas colônias, na intimidade do lar, no seio do Estado, nas relações entre os impérios e as colônias e entre centro e periferia e, por outro lado, que esta colonialidade do poder se expressa em níveis tão diversos que vão do ser, do gênero, do saber sob todas as suas formas, da política…
Os efeitos da colonialidade se fazem particularmente sentir no que exprime a mundialização que lança seus tentáculos dominadores e sufocantes sobre o conjunto do mundo. Ela estrangula os povos ao mantê-los numa precariedade cada vez maior e, quando seus objetivos encontram resistência, os seus apoiadores fervorosos levam a guerra em nome de valores democráticos que, em seu próprio país, são desprezados ou desvalorizados. Ela aprofunda as desigualdades entre os dominantes e dominados, reduz as liberdades privadas e públicas para melhor atingir seus objetivos. Ela controla os espíritos somando-os na referência a um pensamento único, embrutecedor distilado pela maioria dos meios de comunicação.
Ela reduz o papel do Estado ao de guardião dos interesses privados. O poder político, mergulhado numa profunda crise de credibilidade e de legitimidade, torna-se o fator que veicula “os valores” do capitalismo e das palavras de ordem que o acompanham – competitividade, meritocracia, responsabilidade individual, igualdade de oportunidades e boa governança tornaram-se a orientação prinmciapl das políticas. O objetivo sendo o acúmulo de riqueza em benefício de uma minoria.
Essa organização capitalista mortífera não parou de acreditar, e de fazer crer, que há uma hierarquização das “raças” e de uma superioridade das culturas, com a ideia forte de que a civilização europeia é superior a todas as demais. A mundialização favorece a permanência da colonialidade nas relações sociais, relações internacionais, as institucionais e os espíritos e essa colonialidade se estende sob diversas formas, está presente em todos os lugares e nos afeta a todos.
O resultado é incontestável : as mulheres e os homens são tratados, ao mesmo tempo como uma fonte explorável que se pode selecionar, avaliar, eliminar, e como uma mercadoria que se pode jogar fora ou substituir assim como isso era feito no tempo do tráfico negreiro, da escravização e do colonialismo. Bastava antes convencer, pela força das armas, as razzias e pilhagens, as populações vítimas destes crimes contra a humanidade não valiam mais que um móvel e que a colonização trazia o progresso e representava uma oportunidade para todos os povos “ignorantes” a filosofia das Luzes.
Nestes dois contextos, a colonialidade se expressou de forma particularmente violenta e referia-se aos sujeitos racializados. O tráfico negreiro, a escravização, a colonização visava tirar do ser humano toda dignidade obrigando-o assim a admitir a ideia de sua inferioridade, levando-o assim a abraçar os valores brancos. Mesmo livres,os antigos escravos e os antigos colonizados foram instados a endossar a assimilação proposta pelos brancos. Mas, nem de um lado, nem do outro, nada foi superado ou apagado.
Nas sociedades industriais que Michel Foucault chamava de «biopolíticas», ela permitiu que as mulheres e os homens fossem tratados como uma fonte explorável que se pode selecionar, avaliar e mesmo eliminar; hoje ela se expressa num quadro de hierarquias ontológicas que visam diferenciar irremediavelmente para melhor explorar mas num clima de xenofobia ascendente e de esfarelamento social. Assim, o racismo, vivido no cotidiano, pesa fortemente sobre as construções identitárias dos indivíduos; sem esquecer a tentação de algumas pessoas de retornar a uma certa « identidade nacional » que deveria assegurar uma «pureza biológica, religiosa e cultural» que, sozinha, permitiria cimentar a coesão social e de se proteger de supostos inimigos, sejam de dentro ou de fora. Força é constatar que as superestruturas ideológicas de Estado alimentam a exclusão por estigmatizações essencialistas. Para Etienne Balibar, a permanência da colonialidade se exprime dentro dos grupos organizados entre donos e escravos, ou mais simplesmente entre civilizações declaradas “incompatíveis”, o que permitiu a instalação do colonialismo e que permite hoje o neocolonialismo, impondo a uma parte do mundo uma pobreza generalizada e a pilhagem dos recursos naturais em detrimento da cooperação, da solidariedade de uma paz justa fundada sobre uma das regras fundamentais do direito internacional, o direito dos povos a dispor de si mesmos.
Finalmente, 50 anos após as independências, pode-se dizer que se o colonialismo não existe mais sob as suas formas diretas e brutais, a colonialidade nunca desapareceu das mentalidades e particularmente os que dominam e organizam o mundo em relação aos seus interesses.
No âmbito da mundialização, estamos num contexto de dinâmicas “de uma colonialidade global”, dentro da qual continuam a se construir mecanismos de exclusão mas também tentativas de ré-humanização que organizam, entre outros grupos de sujeitos, nas metrópoles e nas cidades dos antigos impérios, descendentes de escravos e sujeitos coloniais, ou ainda os migrantes provenientes do Sul. Todos têm em comum com os antigos escravos e os antigos colonizados o fato de pertencer a uma humanidade sujeita à caução.
Essas « crenças » não cessaram de pesar sobre a organização do mundo.
As suas consequências são inúmeras e exprimem-se, entre outros, por uma reescritura e uma mistificação da história e pela expressão de um racismo que vem golpear em cheio os e as que são dele vítimas. A raça, “como modo e resultado da dominação colonial moderna[ 1] ”, que nunca cessou investir todos os campos do poder capitalista e o racismo, como bem sublinha-o Frantz Fanon, tornou-se “o elemento mais visível, mais cotidiano, e em síntese, em alguns momentos, o mais grosseiro de uma estrutura dada[ 2]”.
Ele se caracteriza por uma falta de respeito pelas pessoas identificadas segundo a sua « raça », o que funciona numa interrelação estreita, tanto no plano individual quanto no plano institucional, via o estabelecimento de redistribuição de recursos materiais e simbólicos segundo as linhas raciais.
A humanidade ainda não chegou a um reconhecimento mútuo mas antes a uma intensificação da intolerância e de recesso identitário.
Ainda não estamos numa sociedade sem raças; não somos ainda numa sociedade onde não há nenhum sentido em pensar o outro em termos de categorização racial, onde todos os cidadãos são realmente livres e iguais.
As representações e as estruturas sociopolíticas foram construídas por processos históricos nos quais as categorizações raciais desempenharam um papel fundamental na construção de um discurso de justificação das desigualdades sociais que estruturaram de forma durável numerosas sociedades. A única maneira de chegar à uma sociedade ideal não é fechando os olhos sobre estas construções mas ousando apreendê-las para melhor desconstruí-las, expôr à luz do dia o que têm de arbitrário, os seus efeitos que discriminam, por vezes mascarados, com o propósito da sua transformação.
Não é suficiente proibir-se de pensar as categorias raciais para que elas não existam mais. Não haverá reconhecimento das tragédias do tráfico negreiro, da escravidão e do colonialismo senão nestas condições, não haverá mudança de paradigma quanto ao racismo que mina as nossas sociedades, sem este trabalho que permitirá, ao fim, uma igualdade de tratamento entre todos os seres humanos.
Como reduzir, ou mesmo aniquilar, o desvio entre a proclamação de princípios normativos universais sobre a não discriminação com o seu corolário a igualdade dos direitos e a sua aplicação particularista, discriminante e racializadora na maior parte das sociedades contemporâneas?
Como sair da atribuição racial que, nas sociedades contemporâneas, continua real, de modo que esta categorização não provoque mais nem estigmatização, nem dominação, nem perpetuação das desigualdades sociais, econômicas e políticas?
Perguntas ainda mais mais urgentes quanto o número de atos racistas, discriminatórios, xenófobos – sem esquecer os atos islamófobos – não param de aumentar, na Europa e particularmente na França[ 3]. A Europa, que vê afluir sujeitos coloniais, originários de regiões nas quais foram elaborados os elementos essenciais da colonialidade continua a levar a efeito o seu procedimento que consiste em dissimular os problemas que ela própria criou e em consequência dos qual outros sofrem, a patologizar as comunidades e os movimentos que protestam ou tentam transformar a sua situação. Processo similar está em curso nos Estados Unidos, que se atacam aos migrantes hispanófonos e a outras comunidades racializadas. Não é raro reencontrar atitudes semelhantes entre as elites do Sul.
Nos Estados Unidos onde, em um ano, 360 AfroAmericanos ou Latinos foram mortos devido à cor da sua pele, pela polícia ou as forças de segurança. Fenômeno que se reencontra também na América Latina, entre outros no Brasil onde se convenciona aceitar “o racismo institucional” – mesmo se for combatido pela SEPPIR e a instauração de ações afirmativas e quotas…
O que nos diz este regresso aos tropismos racistas fundadores?
Pensemos nos termos utilizados para designar a raça em diferentes contextos: “nação”, “nacionalidade”, “etnia”, “grupo étnico” ou mesmo “casta”. É necessário efetivamente admitir que historicamente, as raças são construídas, por conseguinte existem. O emprego da palavra “raça” remete a um posicionamento contextual e não conceptual e é o que deve ser desconstruído.
A eufemização dos discursos contribuiu para reforçar a mutação do racismo; de um racismo baseado no essencialismo biológico, passou-se ao essencialismo cultural. Este deslocamento conceitual reconfortou o néo racismo conferindo-lhe uma invisibilidade frente aos instrumentos da luta anti racista adaptados ao racismo universalista e não ao racismo diferencialista.
Não é por nada que a crise econômico-financeira constroi e reforça o fenômeno do bode-expiatório estimulando assim a rejeição de grupos de pessoas que compartilham de uma mesma proveniência geográfica, um pertencimento étnico, um modo de vida nômade, uma cor de pele, até mesmo uma particularidade física, uma religião. Além disso, vê-se aparecer uma nova categorização – à “dos migrantes” – que se torna um substituto contemporâneo à noção de raça. E vê-se, com a liberação da palavra racista até então impensada ou controlada, retomar a dianteira da cena um racismo baseado no essencialismo biológico.
Seria suficiente banir a palavra “raça” – conceito construído socialmente mas sem referente e sem significado?
Temos a obrigação de reconhecer que as raças, nas sociedades contemporâneas, são reais porque a categorização racial existe e provoca uma estigmatização, uma dominação e perpetuação das desigualdades sociais, econômicas e políticas contra as minorias.
A esse respeito, a noção de dominação é útil, insiste nas relações de poder e não nas relações de identidade no tratamento dos conflitos étnicos e culturais contemporâneos. Ela não faz referência à identidades essencializadas mas às condições sociais atribuídas, histórica e politicamente, bem como às estratégias de emancipação associadas a estas condições. É portanto importante atacar as estruturas de dominação para as quais se prestam para designar e ver como poderiam ser promovidas políticas de reconhecimento e de restauração – que não sejam políticas de identidade mas políticas de paridade? Para tanto, seria útil mais não designá-lo como reconhecimento identitário mas recorrer à não-dominação das identidades específicas e remover o conjunto de obstáculos estruturais que impedem uma participação plena dos cidadãos.
A única maneira de chegar a uma sociedade ideal não é fechando os olhos a estas construções, mas ousando apreendê-las para desconstruí-las, salientar a sua arbitrariedade, os seus efeitos que discriminam, por vezes mascarados, visando a sua transformação.
Neste sentido “explorar a colonialidade” obriga a focar o princípio do reconhecimento como uma questão de estatuto social e político a fim de mais não apreender os membros pela sua origem étnica original mas reconhecendo-lhes um estatuto de parceiros iguais nas interações sociais. Isso também obriga a questionar as condições de trabalho e a concordar com Frantz Fanon de que “se não forem alteradas, serão necessários séculos para humanizar este mundo tornado animal pelas forças imperialistas[ 4]”.
As elites políticas e intelectuais, para além do seu papel assumido na continuidade de um sistema mortífero, têm uma responsabilidade na permanência do colonialidade, entre outras formas ao se recusarem a mudar de paradigma e autorizando a liberação impensada do racismo e o retorno ao racismo biológico.
O desafio para parar favorecer esta permanência da colonialidade, tanto nas relações sociais e as instituições quanto nas relações internacionais, de modo a promover políticas que façam existir “o agir conjuntamente, os iguais e diferentes[ 5]”, reside ao mesmo tempo na luta contra as relações coloniais formais, na elaboração de estratégias de oposição e de mudança orientadas contra as dimensões coloniais, racistas e desumanizantes dos Estados-nação e na elaboração de uma matriz do poder mundial que não pode ser reduzida à sua dimensão capitalista.
[1] Anibal Quijano, Race et colonialité du pouvoir , Mouvements 3/207, n° 51, pages 111-118
[2] Frantz Fanon, Racisme et culture in Pour la révolution africaine, Editions Maspero, 1964
[3] Voir le rapport de la CNCDH, http://www.cncdh.fr/fr/publications/rapport-dactivite-2012 et la carte des actes islamophobes en France, http://www.islamophobie.net/la-carte-de-france-des-actes-islamophobes
[4] Frantz Fanon, Les damnés de la terre, éditions Maspero, 1961
[5] Hannah Arendt, Condition de l’homme moderne, Paris : Calmann-Lévy, Coll. Agora les classiques, 1983.
Texto apresentado pela autora durante conferência sobre Cidades Sustentáveis e Inclusivas, por ocasião do Fórum Social Temático Crise Capitalista, Democracia, Justiça Social e Ambiental, realizado em janeiro de 2014, em Porto Alegre