Rosa Parks e a pedagogia da desobediência

Foto:achievement.org

A história oficial é essencialmente masculina. Nos maiores e mais importantes eventos da humanidade a figura da mulher tem pouco destaque. No entanto, aos poucos, algumas reparações começam a ser feitas porque são inúmeras as protagonistas na história. E o traço comum entre elas é o da desobediência, ou seja, uma teimosia militante contra a ordem vigente e que resultará em rompimento da dita normalidade. Este é o caso da história de Rosa Lee Parks, uma das mais importantes ativistas pelos direitos civis e contra a discriminação racial nos Estados Unidos.

Rosa nasceu em fevereiro de 1913 no estado do Alabama, Estados Unidos, há 100 anos, mas ela mesma diz ter outra data de nascimento: 1º de dezembro de 1955. Mais adiante no texto se entenderá o porquê dessa outra data. Parks teve forte influência do avô, que a ensinou a enfrentar todas as circunstâncias discriminatórias por conta da cor com firme dignidade e jamais aceitar o preconceito como natural. Em sua infância, a lembrança permanente era da Ku Klux Klan, um grupo branco que queimava as casas dos negros e enforcavam os que sobreviviam.

Ainda criança sentiu, na prática, a profunda divisão racial na sociedade norte-americana. Jovem ainda, engaja-se como costureira na Associação Nacional para o Desenvolvimento das Pessoas de Cor (NAACP – sigla em inglês), uma organização de defesa dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Lá conheceu seu marido, Raymond Parks, um mestiço de grande influência naquela associação. Os dois eram voluntários na organização e atuavam na formação e conscientização dos marginalizados e buscavam, com apoio de advogados, atuar na defesa dos negros presos apenas por serem negros.

Em 1º de dezembro de 1955, depois de um dia inteiro de trabalho, principalmente fazendo costuras na associação, estava moída de dor e voltaria para casa de ônibus. Rosa sofria de fortes crises reumáticas e o frio era de rachar. Em sua casa, mãe e marido estavam febris. Mesmo assim, depois de cuidar dos dois, ainda iria naquela noite à igreja Luterana onde rapazes e moças negras a esperavam para receber dela uma espécie de introdução aos direitos civis. Nas reuniões os temas eram vários: solidariedade paroquial, brutalidade patronal, empréstimos abusivos, situação da moradia, saúde, etc.

No Sul dos Estados Unidos existiam as leis Jim Crow, um conjunto de regras segregacionistas entre brancos e negros. Depois de colocar dez centavos na caixa do ônibus perto do motorista, Rosa Parks é obrigada a descer e entrar pela porta traseira. Muitas vezes, os motoristas arrancavam o ônibus e deixavam vários negros a pé e sem dinheiro. Não aconteceu naquele dia 1º de dezembro. No fundo do ônibus existiam apenas dez assentos destinados aos negros. Era a lei. Na frente do veículo só podia sentar os brancos e no meio existia uma “zona de risco”, isto é, havia assentos onde os negros podiam se sentar, mas se chegasse um branco, era obrigado a ceder o lugar.

Quando Rosa entrou no ônibus já não tinha lugar para sentar ao fundo. O porão do navio negreiro estava cheio. Ela precisava sentar-se. Apenas alguns assentos livres na zona de risco e lá ela se sentou. Na segunda parada, mesmo tendo assentos livres para os brancos, alguns deles se dirigiram a zona de risco e o motorista obrigou todos os negros a ceder os lugares. Rosa Parks desobedeceu. Mesmo sendo ameaçada pelo motorista de ir para a cadeia, a costureira manteve-se em seu assento para o espanto de brancos e negros no ônibus. “O senhor quer me prender? Tudo bem”, disse ela bastante calma. Estava farta das humilhações e para ela, a desobediência civil, era a única alternativa.

“Ao dizer ‘não’, completamente desarmada, eu ficava em paz comigo mesma. Não tentava ser uma cidadã-modelo: eu, a quem a lei excluía do direito ao voto, assim como da liberdade de beber água em qualquer bebedouro, de me sentar num lugar mesmo que ele estivesse livre, de usar banheiros públicos, ou seja, de pertencer a um país cujos valores eu não compartilhava. Ao contrário dos humanos, os animais bebiam na mesma fonte, qualquer que fosse a cor de seu pelo”, escreveu Rosa Parks.

Na delegacia, tiraram as impressões digitais da “criminosa”. Ela pediu água, mas o bebedouro era apenas para brancos. Era a primeira vez que tinha sido presa. Na fria, escura e suja cela, Rosa e outras mulheres negras, Chris e Rebecca. As três presas por desobediência a lei branca. Graças a uma mobilização do seu marido e apoio de advogados militantes da causa racial, foi paga uma fiança e Rosa Parks foi libertada na mesma noite, deixando as outras duas mulheres na cadeia. Sua revolta e indignação ganharam corpo com aquele quadro. “Vivia a noite mais agitada de minha vida. A noite da iniciação, onde tudo começou”, dizia ela, que não se esquecia de Chris e Rebecca.

Parks não se contentava mais com ações conciliatórias da NAACP. Era preciso fazer mais. O limite já havia sido ultrapassado. Com alguns amigos, resolveu prestar queixa contra a companhia de ônibus. Um escândalo. Foi duramente criticada pela imprensa. Numa reunião na associação, gritava ameaçando nunca mais pegar ônibus, indo e voltando do trabalho a pé. Em dias, talvez o maior e mais longo boicote (protesto) contra a situação de discriminação racial nos ônibus tomou conta do Alabama. E o ato começou no dia 5 de dezembro, data do julgamento de Rosa, que foi condenada a pagar dez dólares pela infração de ter se recusado a ceder o assento a um branco.

Como numa ação viral impressionante, os negros boicotavam os ônibus. Centenas eram visto andando juntos e pé. Era uma marcha diária de terror para o Estado, além do prejuízo econômico de ônibus quase vazios e escoltados pela polícia. Vale registrar a participação ativa de pastores batistas na luta. Rosa organizava caronas, convoca táxis dirigidos por negros que, por solidariedade, cobraram apenas dez dólares. O movimento crescia e tomava enorme dimensão. Rosa e o marido foram demitidos. Um jovem pastor de 28 anos, Martin Luther King Jr. engajou-se na luta e passa a coordenar o boicote dos ônibus do Alabama.

Mesmo com o desemprego, com grandes necessidades, as intensas ameaças de morte, Rosa Parks se manteve firme na desobediência e no boicote, que abalou a supremacia branca do Sul dos Estados Unidos. O protesto durou um ano e 16 dias e terminou com o fim da abolição total e definitiva da segregação racial nos ônibus do Alabama. Por conta do boicote, Rosa e Raymond foram condenados judicialmente a pagar 800 dólares. Sem mais condições mais de sobrevivência na pequena cidade de Montgomery, eles foram obrigados a se mudar para Michigan. “É hora de nos afastarmos do Alabama. O Sul tem ódio demais do negro”, lembra Rosa Parks.

Poucos sabem, mas quando da marcha de um milhão de pessoas em Washington em 1963, lideradas por Martin Luther King, quem estava nas primeiras fileiras e em destaque era Rosa Parks, que se tornou figura central. Ela morreu em outubro de 2005, aos 92 anos, mas entrou para a história como uma mulher que mostrou ao mundo o papel revolucionário e pedagógico da desobediência, da transgressão e da resistência.

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