Criança e Merchandising

O Conselho Superior do Conar, acolheu a preocupação da ABA – Associação Brasileira de Anunciantes – e incorporou à Seção 11 do Código, que reúne as normas éticas para a publicidade do gênero, a recomendação que ações de merchandising em qualquer programação e veículo não empreguem crianças, elementos do universo infantil ou outros artifícios publicitários com a deliberada finalidade de captar a atenção desse público específico.

O Código também passa a condenar a inserção de ações de merchandising de produtos e serviços destinados a crianças nos programas criados, produzidos ou programados especificamente para o público infantil, qualquer que seja o veículo utilizado. A partir da entrada em vigor das novas normas, a publicidade de produtos e serviços do segmento deve se restringir aos intervalos e espaços comerciais.
Festa geral na aldeia. Até a sociedade civil organizada em torno de, ou sensível ao tema, considerou que suas reivindicações e reclamos foram finalmente ouvidos e contemplados. Mas os mais envolvidos com o acompanhamento da questão – como o Idec e o Instituto Alana – perceberam a insuficiência do “avanço”.
Assim, embora considere a autorregulamentação em questão insuficiente, o Idec entendeu que o Conar se mostrou mais sensível a suas reivindicações – “A publicidade para crianças continuar sendo admitida nos intervalos de programas infantis, por exemplo, é um problema. No entanto, apesar de ter falhas, essas novas medidas mostram que o órgão está assimilando algumas de nossas reivindicações”, afirma o gerente técnico do Idec, Carlos Thadeu de Oliveira.
Entretanto, uma leitura atenta dos termos e dos textos revela a real motivação que moveu o Conar, na defesa dos interesses econômicos da categoria que representa.
Assim, o texto no site do CONAR explicitamente afirma:
“O presidente do Conar, Gilberto C.Leifert (…) frisa, contudo, a importância de não se impedir a exposição de crianças à publicidade ética. “O consumo é indispensável à vida das pessoas e entendemos a publicidade como parte essencial da educação. Privar crianças e adolescentes do acesso à publicidade é debilitá-las, pois cidadãos responsáveis e consumidores conscientes dependem de informação”, diz ele.
Vejam bem: “não se impedir a exposição de crianças à publicidade”… “a publicidade como parte essencial da educação”… “privar crianças e adolescentes do acesso à publicidade é debilitá-las”… sinalizam claramente que não estamos diante de mais um passo na direção da proteção das crianças frente à publicidade mas de um fortalecimento da mesma, excluindo apenas este instrumento de marketing – o merchandising com utilização da figura de crianças ou de elementos infantis – como concorrente incômodo da indústria da publicidade. E, neste raciocínio, o presidente do Conar enfatiza a sua função… educativa.
O presidente da Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e TV), Daniel Slaviero, considera que “A decisão terá um impacto econômico na receita das emissoras, mas revela o amadurecimento da autorregulamentação da comunicação no país”. Dois aspectos importantes fazem parte deste raciocínio – o aspecto econômico e o “amadurecimento da autorregulamentação”, se antecipando a perspectiva de avanço da regulamentação propriamente dita – justamente a que lhes convém evitar…
Luiz Lara, presidente da Associação Brasileira das Agências de Publicidade (Abap), concorda:
“ É mais uma iniciativa saudável, mostrando que o caminho não é a proibição ou o fim da publicidade. A medida é importante no sentido de exercermos a liberdade de expressão com responsabilidade”.

Vamos agora ao aspecto econômico da questão.
Que impacto econômico se espera que a medida tenha na receita das emissoras?
A ação do merchandising, que pode beirar as margens da proibida propaganda subliminar – na medida em que impede a percepção consciente da publicidade enquanto tal, remunera quem? O ator que, na novela, fala de um banco, ou toma um refrigerante cuja marca se vê? O apresentador do programa que fala ou mostra um determinado produto? O autor da novela ou do filme que permite ou bola a inserção da cena em que o produto aparece sendo usado? A própria emissora de TV, como sugere o presidente da Abert?
Há algum tempo atrás, o projeto Cidade Limpa de São Paulo, proibindo a utilização de out-doors, não reduziu a verba publicitária – simplesmente a redirecionou para os jornais, que tiveram uma sobrevida assim garantida. Os recursos que não mais serão gastos em merchandising, para onde vão?… Para a indústria da publicidade, que passa a ser solicitada a criar mais anúncios, é claro!
O anunciante não sofre prejuízo e, ainda por cima, se beneficia da imagem de responsabilidade social. Gastará provavelmente a mesma verba, direcionada para outra ação de marketing – a publicidade, a promoção em ponto de venda, e o que mais ditar a imaginação criativa dos marqueteiros.
O merchandising
Perde muito este ramo da promoção de produtos com essa recomendação do Conar?
Talvez perca mas:
– A autorregulamentação já previa veto a ações de merchandising de alimentos, refrigerantes e sucos em programas especificamente dirigidos a crianças
– O merchandising viola o artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual a publicidade deve ser veiculada de forma que o consumidor a identifique como tal, como aponta Carlos Thadeu de Oliveira, gerente técnico do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).
Na verdade, diante disso, o Conar simplesmente corrigiu … o seu atraso no cumprimento da lei.

Isto é, se tiver condições de fato de acompanhar o seu cumprimento, como aponta Isabella Henriques, diretora do Instituto Alana, lembrando que “ações de merchandising raramente são repetidas o que faz com que o Conar não tenha muito a fazer se verificar algum merchandising voltado às crianças, mesmo porque não tem poder de polícia, não pode aplicar multa, só poderia pedir para que seja sustada a ação. Mas se ela já não será mesmo repetida, essa recomendação fica sem sentido.”
O anunciante
Cabe aos empresários a tarefa de perceber a oportunidade, investir nela, minimizar os custos e maximizar os seus lucros.
Por “lucros” já não cabe mais tão-somente o capital em moeda corrente do país-sede da empresa (ou mesmo em moeda internacional), mas também em termos de imagem, que reverte, a curto, médio ou longo prazo, em lucros financeiros. O marketing social agrega valor à marca.
E solicitar e aplaudir a iniciativa do Conar poderá facilmente ser utilizado pelos anunciantes como marketing social. É só dizer “Por uma questão de ética e responsabilidade, apoiamos a proibição do uso da imagem de crianças em merchandising”. Não é bonito? Não comove e emociona?
Ou algo menos direto como, por exemplo, a campanha do Mac Donalds na campanha contra o câncer infanto-juvenil, com o seu McDia Feliz
Desde 1988 o McDia Feliz – arrecadou mais de R$ 51 milhões no Brasil, utilizados principalmente para o combate ao câncer infanto-juvenil. A imagem da rede de lanchonete também se beneficia
do evento, com ampla exposição em mídia. Em 2004 por outro lado, o McDonald”s do Brasil faturou R$ 1,9 bilhão.
Gastos com saúde pública superam R$ 1,5 bilhão O custo disso para o sistema de saúde do país é bem superior ao trabalho social realizado pelo Instituto Ronald McDonald. Pelas estimativas do governo federal, em 2000 as doenças causadas pela obesidade elevavam em R$ 1,5 bilhão ao ano os gastos de saúde pública no país.

A rede de fast food não está desatenta ao problema, tanto que lançou no Brasil, em 2003, o site Comendo e Aprendendo para “estimular a adoção de um estilo de vida saudável”.
Parece pouco, diante do impacto do Fast Food na obesidade infantil, citado por Isabella Henriques referindo-se a pesquisas científicas ao redor do mundo que apontam a publicidade de alimentos com altos teores de sódio, açúcar, gorduras saturadas e trans e de bebidas de baixo teor nutricional como fator responsável pela obesidade infantil: “É claro que a obesidade é multicausal e não é somente a publicidade sua responsável, mas é um fator importante e que se não existisse reduziria consideravelmente os índices no mundo todo. E isso acontece porque a criança é altamente influenciável, ela realmente acredita no que a publicidade diz, e infelizmente não existe nos meios publicidade de alimentação saudável, só de junk food. Até por isso o mercado, representado pelas maiores empresas do setor, fez compromissos coorporativos em todo o mundo no sentido de que não mais fará publicidade de produtos tais como os mencionados para crianças. A Coca-Cola chegou a comprometer-se a não fazer qualquer tipo de comunicação mercadológica às crianças de qualquer produto seu, mesmo dos sucos!” A preocupação da diretora do Instituto é a ausência de controle sobre o cumprimento desses chamados pledges.

A publicidade
Por ser um público extremamente sugestionável, persuadido com facilidade, as crianças são vistas pelas empresas como parte relevante do mercado. Para o Idec, tendo como base o artigo 37, parágrafo 2º, do CDC (Código de Defesa do Consumidor), a publicidade direcionada ao público infantil é abusiva pois se aproveita da deficiência de julgamento da criança, um público extremamente sugestionável e persuadido com facilidade, muito sensível às práticas de marketing. A problemática fica ainda maior quando a publicidade estimula padrões de consumo alimentares não saudáveis.

A legislação
A proteção das crianças à publicidade abusiva esteve prestes a ganhar uma importante lei no Brasil. Após aprovação na Assembleia Legislativa de São Paulo, o governador do Estado Geraldo Alckmin, vetou um PL que regulava a publicidade de alimentos não saudáveis dirigida às crianças, especialmente entre às 6h e 21h em rádios e televisões e em quaisquer horários nas escolas.
A justificativa para o veto foi a de inconstitucionalidade do PL, pois o artigo 22, parágrafo XXIX, da Constituição Federal, determinaria ser de competência da União legislar sobre propaganda comercial. Ou seja, jogou a batata quente no colo do próximo, provavelmente contabilizando ganhos e prejuízos que teria ao permitir (ou não) contrariar os interesses da indústria, que pode ser mais, ou menos generosa no financiamento de campanhas eleitorais. Estranha coincidência, a próxima deverá eleger os novos governadores, deputados, senadores e presidente/a da república.

O Idec lamentou a decisão, defendendo que, baseado no CDC, outras leis podem regulamentar a publicidade de forma a proteger a criança e o consumidor em geral.
Outros países
O Prof. Dr. Edgard Rebouças , da Campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania”, já em 2005, comparou a legislação de uma série de países sobre a Regulamentação da publicidade na TV para crianças e adolescentes.
Sua pesquisa mostra a proibição da publicidade para crianças na Bélgica (nas regiões flamengas), na Dinamarca (durante, e cinco minutos antes e depois dos programas infantis), na Grécia (publicidade de brinquedos entre 7h e 22h), na Noruega (produtos e serviços direcionados a crianças com menos de 12 anos, proibida publicidade durante programas infantís), e na Província do Quebec – Canadá ( qualquer publicidade de produtos destinados a crianças de até 13 anos, em qualquer mídia)
Em outros lugares, há medidas protetivas a serem observadas, como na Comunidade Européia (onde a publicidade não deve incitar os menores à compra de produtos ou serviços, explorando a sua inexperiência e credulidade, bem como não deve incitá-los a insistir com os pais para que comprem um produto ou serviço – lembram do anúncio “compre batom!”?)
Finalmente, a Inglaterra, Austrália, Canadá e Estados Unidos têm uma série de regras e normas a serem observadas, de modo a não se beneficiar da credulidade das crianças (sem efeitos especiais que insinuem que o produto faz mais ou é maior ou mais veloz do que pode, que funciona sozinho, que uma criança será inferior à outra se não usar o produto ou serviço anunciado, proibido encorajar a valentia, sem brindes, não agir no inconsciente da criança, não usar expressões como “somente/apenas” ou “o mais barato” etc.)
Prof. Dr. Edgard Rebouças aponta, à guisa de conclusão, a preocupação com o interesse público que norteia essas legislações (consumo sem medida, problemas de saúde, obesidade), bem como a participação da sociedade civil nos conselhos de auto-regulamentação, e a participação do governo, na renovação (ou não) das concessões, quando a tendência à auto-regulamentação é (ou não) observada.
Quão longe estamos disso ainda? Avancemos, pois.Referências Utilizadas:
– Matéria de O Globo
– Site do Conar
– Idec
– Revista Migalhas
– Outras matérias publicadas na grande imprensa

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