A verdadeira cortina de fumaça

Num momento de inconfidência ingênua em 2005, a viúva do fundador das Organizações Globo, Lily Marinho, afirmou que o marido, “Dr.” Roberto, foi o responsável pela criação e derrocada do primeiro presidente eleito pelo voto popular depois da ditadura civil-militar. Levando-se em conta a edição criminosa do último debate entre Lula e Collor em 1989, é impossível discordar dela. Mas sem o apoio explícito de meios de comunicação hegemônicos como Veja, Folha de S.Paulo e O Estado de São Paulo, somados a outras redes de TV, revistas e jornais, talvez nunca o “Caçador de Marajás” tivesse chegado à presidência. Isso porque são esses veículos, em conjunto, que atuam politicamente (como confirmou a presidenta da Associação Nacional dos Jornais, Maria Judith Brito, ao afirmar em 2010 que “obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país”) “elegendo” para a “opinião pública” quais seriam os candidatos “confiáveis”.

Para muitos, a máscara da imprensa isenta caiu junto com o “mosqueteiro da ética” da Veja, o futuro ex-senador Demóstenes Torres, flagrado com um rádio-celular fornecido e pago por Carlinhos Cachoeira. Nas milhares de horas de escutas telefônicas realizadas pela Polícia Federal, em análise na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito em atuação no Congresso, os membros da quadrilha combinam entre si e com jornalistas as datas, espaços e veículos em que suas “denúncias” seriam publicadas. Grampos e filmagens ilegais faziam sempre parte do pacote, assim como o amplo acesso e facilidade de entrevistar políticos “amigos”, como o próprio Demóstenes, e magistrados como o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. De um lado, Cachoeira fustigava inimigos de seus interesses “comerciais”. De outro, a imprensa garantia “escândalos” nas capas e mantinha o governo acuado e sem possibilidade real de mexer nos monopólios midiáticos.

Chantagem midiática

Por isso, além das relações do bicheiro com empreiteiras e políticos, a intersecção com a mídia deveria ser um dos focos principais da investigação. Afinal, em um país com a histórica lentidão do judiciário e amplas brechas na legislação, como o nosso, o acesso garantido à mídia hegemônica é uma forte carta de chantagem para criminosos. Mas, diferente do Reino Unido onde até o primeiro-ministro David Cameron tem sido interrogado sobre suas ligações com o magnata das comunicações Rupert Murdoch, aqui, frente à menor tentativa de se questionar a imprensa, os empresários da mídia se levantam em ordem unida para repudiar os “ataques à liberdade de expressão” em editoriais, matérias fantasiosas (uma capa recente da Veja traz um clipping de artigos da imprensa alternativa como sendo um “manual do PT contra os inimigos” na CPMI) e blogs de política. Da mesma forma, à qualquer questionamento sobre a ação ou inação de setores do Judiciário e do Ministério Público que teriam beneficiado o esquema de Cachoeira, logo se erguem as mesmas vozes em uníssono acusando os “réus do mensalão” de tentarem criar uma cortina de fumaça para “melar” o julgamento do caso.

Cachoeira de escândalos na capa

Nas contas do jornalista Luis Nassif, pioneiro na denúncia de conluios político-comerciais da revista Veja, inclusive com Cachoeira há mais de quatro anos (acesse O Caso de Veja em http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-serie-o-caso-de-veja), pelo menos oito capas da publicação teriam vindo diretamente da central de arapongagem do bicheiro. Entre elas estão o primeiro escândalo do governo Lula (o pedido de propina do ex-assessor de José Dirceu, Waldomiro Diniz, a Cachoeira que levou à CPI dos Bingos, onde o diretor da Veja em Brasília, Policarpo Junior, testemunhou em favor do bicheiro), o chamado “mensalão” (quando Cachoeira tirou o PTB dos Correios e do governo) e o “grampo sem áudio” entre Demóstenes e Gilmar Mendes (destruindo a Operação Satiagraha, que havia prendido o banqueiro Daniel Dantas – liberado com dois hábeas corpus em 24 horas por Mendes, e levando à demissão do delegado da Polícia Federal Paulo Lacerda, que não compactuava com o esquema).

A Veja, no entanto, não está sozinha. Em trechos de gravações expostos durante o depoimento do governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, o bicheiro é explícito em afirmar que ia botar o “gordinho” (apelido dado a Demóstenes) para “bater” nele e iria municiar a revista Época, das Organizações Globo, de material até derrubar o governo. De fato, dias depois o senador subiu à tribuna do Congresso para pedir o impeachment do governador. Seria somente mais um discurso político de oposicionista, se não houvessem as matérias na revista repercutidas à exaustão na TV Globo e em outros veículos do chamado PIG – Partido da Imprensa Golpista.

Foram essas “denúncias” que levaram à convocação de Queiroz pela CPMI, equiparando-o ao governador de Goiás, Marconi Perillo, cuja chefe de gabinete também possuía um rádio-celular fornecido por Cachoeira, pelo qual trocou mensagens com o bicheiro para informar um prefeito aliado de que haveria uma operação da PF no município. Ao menos 14 oficiais das polícias civil e militar do estado foram presos junto com Cachoeira na Operação Monte Carlo. Os indícios de indicações de aliados de Cachoeira para o governo se contam às dezenas, incluindo toda a cúpula do Detran local. O governador ligou pessoalmente ao bicheiro para cumprimenta-lo pelo aniversário (reclamando não ter sido convidado para a festa) e jantou com ele e associados em pelo menos duas ocasiões.

Mensalão e mídia

“Coincidentemente”, Perillo foi o governador que teria “alertado” Lula sobre o “mensalão” meses antes do ex-presidente do PTB, Roberto Jefferson, cunhar o termo como contra-ataque ao PT depois da divulgação das imagens (feitas por Cachoeira e divulgadas na Veja) de um apadrinhado seu nos Correios recebendo propina. Formado recentemente numa faculdade particular de Goiás, Perillo teve Demóstenes e Gilmar Mendes (o mesmo que ganhou outra capa da Veja há algumas semanas ao acusar o ex-presidente Lula de pressiona-lo para adiar o julgamento do “mensalão”) como convidados de honra na formatura.

Depois dos depoimentos dos governadores na CPMI, o Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, pediu a abertura de três investigações: duas sobre as relações entre os governadores e o esquema de Cachoeira e uma com base nas matérias da revista Época sobre Agnelo. No mesmo dia, ironicamente, o ex-presidente Fernando Collor de Mello entrou com uma representação no Conselho Nacional do MP contra Gurgel e sua esposa, a procuradora Cláudia Sampaio Marques, para que esclareçam em 15 dias o porque da “inércia ou excesso de prazo” que paralisou as investigações da Operação Vegas da PF, que em 2009 já mostrava claros indícios de associação entre Cachoeira e Demóstenes. Quando perguntado informalmente a respeito do não arquivamento e nem andamento do caso pelos membros da CPMI no início dos trabalhos, o Procurador Geral, responsável pela acusação do “mensalão” no STF, gritou, para delírio do PIG, que estava sendo atacado por “protetores dos mensaleiros”.

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