As artimanhas do governo

Em outubro do ano passado, isto é, dez meses depois de assumir o
Ministério das Comunicações, o ministro Paulo Bernardo editou uma nova
Norma Técnica para as rádios comunitárias (RCs). A Norma 01/11 não tem
novidade do ponto de vista político: é mais um dispositivo criado para
legitimar o processo histórico de segregação e discriminação das RCs
pelo Estado brasileiro.

Agora, sete meses depois de lançar a Norma, o Ministério das
Comunicações encaminhou à Casa Civil da Presidência da República uma
proposta de mudança no Decreto 2615/98, que regulamenta a Lei nº
9.612/98 das RCs. Antes de analisar a proposta do ministério, cabe a
questão: por que o governo primeiro mudou a norma para depois mudar o
decreto se o poder do decreto antecede a norma? Afinal, se o decreto
for assinado, a norma vai ter que mudar para se ajustar ao novo
decreto. Por que Paulo Bernardo lança uma norma técnica dez meses
depois de assumir, e 16 meses depois apresenta um decreto para mudar
esta norma?

A questão é bizarra, mas quem conhece o histórico do ministério sabe
que as bizarrices estatais são comuns quando se trata de rádios
comunitárias.

A proposta encaminhada à Casa Civil provavelmente foi elaborada pela
Secretaria de Radiodifusão Comunitária do Ministério das Comunicações
e pela Anatel. Ela propõe alterar sete artigos do Decreto 2.615/98.
Uma análise mais acurada e não governista mostra que se propõem
mudanças tímidas, covardes até, diante da dimensão do problema maior
existente hoje: uma legislação que promove a exclusão do setor. Na
verdade, fazendo uso da linguagem do senso comum, esse decreto é
apenas mais uma tentativa de enrolação do movimento. Se as mudanças
prosseguirem nessa velocidade, somente daqui a 10 mil anos teremos uma
legislação justa para quem faz rádio comunitária.

Dez anos

A primeira alteração proposta é quanto ao alcance da emissora. A lei
fala que a RC deve atingir o bairro ou a vila, mas o artigo 6º do
decreto em vigor fixa o alcance em 1 quilômetro. O que está em vigor,
portanto, é ilegal, pois um decreto não pode ir além do que diz a lei,
e a Lei 9.612/98 não fala desse limite. Agora, finalmente, o Executivo
pretende acabar com esta ilegalidade cometida pelo próprio Executivo
propondo que a rádio atenda“um bairro, vila ou localidade de pequeno
porte”. Ou seja, passados 14 anos, o Executivo decidiu seguir a lei.
Deve-se comemorar quando o Estado resolve seguir a lei?

A segunda mudança proposta, no artigo 11, é burocrática. “Corrige-se”
o texto anterior substituindo o termo “sociedades civis” por
“associações comunitárias”. Uma mudança inútil para quem está focado
no que é real, distante da papelada que alimenta o mundo kafkiano do
Ministério das Comunicações, consumidor voraz de papéis inúteis. Outra
mudança neste artigo inclui uma esquizofrenia típica do ministério:
diz que os dirigentes devem “morar no bairro ou vila onde se pretende
instalar a antena transmissora ou em um raio de até um quilômetro”.
Isto é, o dirigente deve morar (sim, é autoritarismo) dentro do gueto
de 1 quilômetro (determinado pelo artigo 6º do decreto) ou no bairro
ou vila. Se a pessoa já é obrigada a morar dentro do bairro ou vila,
para que serve este “ou”?

A terceira mudança é no artigo 17. A ideia é atualizar o que estava na
Lei 9.612/98, determinando que o tempo de “concessão” de RC deve ser
de dez anos, e não de 3 anos como diz hoje o decreto hoje em vigor.
Portanto, mais uma vez não há o que comemorar. Tenta-se ajustar a
redação do Decreto 2.615/98 a uma alteração feita em 2002 (por meio da
Lei 10.610) que estabelece como de dez anos o tempo de validade da
autorização da RC. Ou seja, o Executivo demorou dez anos para perceber
que a lei mudou e que, portanto, é preciso mudar o decreto para se
ajustar a lei!

A quarta mudança trata de um vespeiro: publicidade nas RCs. O texto
original do decreto diz:

Art. 32 – As prestadoras do RadCom poderão admitir patrocínio, sob a
forma de apoio cultural, para os programas a serem transmitidos, desde
que restritos aos estabelecimentos situados na área da comunidade
atendida(grifo nosso).

A nova proposta diz:

Art. 32 – As prestadoras do serviço de radiodifusão comunitária
poderão admitir patrocínio, sob a forma de apoio cultural, de pessoas
jurídicas de direito público ou privado e de empresários individuais
com atuação na área de alcance da transmissão (grifo nosso).

§ 1º Entende-se como patrocínio, sob a forma de apoio cultural, para
efeitos deste serviço, o apoio financeiro concedido a projetos,
programas ou eventos vinculados à programação das emissoras de
radiodifusão comunitária, bem como a cessão, para o mesmo fim, de bem
móvel ou imóvel sem a transferência de domínio.

§ 2º O patrocínio de programas, eventos ou projetos implica, como
contrapartida, a citação da marca, permitindo ainda a divulgação de
informações dos produtos, serviços e contatos do patrocinador, ficando
vedada a veiculação de seus preços e condições de pagamento(grifo
nosso).

Conduta “premiada”

Esta proposta é uma “pegadinha”. Uma típica artimanha de quem quer
manter a segregação das rádios comunitárias. Primeiro se nota uma
mudança sutil no texto. O que está em vigor fala de “estabelecimentos
situados na área da comunidade atendida”; o texto proposto fala de
estabelecimentos situados “na área de alcance da comunidade atendida”.
Discretamente foi inserido o termo “alcance” para limitar a obtenção
de patrocínio pelas RCs. Isto é, continua valendo a regra de que as
RCs só podem fazer publicidade de quem estiver dentro do “campo de
concentração” determinado pelo Estado. Em outras palavras: não mudou
nada.

O mais importante nessa mudança do artigo 32 é a definição de apoio
cultural. Aqui, mais uma vez, o Ministério das Comunicações/Anatel
tenta impedir que a RC faça publicidade como os demais serviços de
radiodifusão. Permite-se à RC fazer a divulgação do produto e da
marca, mas não dos preços e condições de pagamento.

O Ministério das Comunicações poderia ser inteligente (sim,
inteligente) e ousado (não dominado por ideias mofadas) e estabelecer
regras éticas para a publicidade nas RCs. Isto serviria como
norteamento das RCs para sua missão educativa, pedagógica. Mas o
Ministério das Comunicações e, pelo visto, a Secretaria de
Radiodifusão Comunitária do ministério, continuam submissos às grandes
redes de comunicação – elas não admitem que a rádio comunitária pegue
“o mercado publicitário”. Ocorre que a missão da RC não é ganhar
dinheiro fazendo publicidade; a rádio comunitária quer, tão somente,
ter sustentabilidade, sobreviver, pagar os que nela atuam, e,
principalmente, captar recursos para bancar seu projeto maior, que é o
desenvolvimento da comunidade, promover a cidadania e a solidariedade.

Por que propõem algo tão restritivo?

Não parece que a legislação – pelo menos no seu aspecto superficial –
seja desconhecida pelos tecnocratas do ministério. O que se tem aqui,
mais uma vez, é o ministério sustentando a velha política de
segregação e discriminação do setor; uma postura ideológica de Estado
que não muda.

Mas vamos à quinta proposta de mudança no decreto. Ela introduz duas
alterações ao artigo 36. Primeiro, atualiza o texto para o prazo de
“outorga” (dez anos). Segundo, estabelece que a RC tem que começar o
processo de renovação da outorga três meses antes do fim do contrato.
Antes o prazo era de um mês. Ruim para rádio, bom para burocracia
estatal.

Quanto à sexta proposta de mudança no Decreto 2.615/98: o artigo 37,
no original, estabelece cobrança pelos serviços burocráticos no
processo de renovação; agora se propõe a dispensa de cobrança (a
palavra “gratuita” está lá no texto). É um “ato caridoso” do
ministério que deve ser olhado com o devido desprezo pelos que fazem
rádio comunitária. Isto não muda a política de segregação.

Finalmente o governo propõe modificar o artigo 40. Ele trata das
infrações cometidas pelas RCs. Hoje são 29 punições! O novo texto não
altera nenhuma delas; não acrescenta nem elimina. Apenas estabelece
que, como prêmio de boa conduta, as multas cobradas nas emissoras que
não cometeram nenhuma infração antes podem ser convertidas em
advertência. Portanto é mantido o aparato punitivo (vide Michel
Foucault, Vigiar e punir) e se dá um crédito para aqueles de boa
conduta. Agora, observe-se que o texto fala no condicional – “podem”
–, isto é, alguém, algo, um poder não muito claro é que vai decidir
que rádios terão direito a este premiozinho de boa conduta.

Burocracia poderosa

Em síntese, pode-se afirmar que as mudanças que estão sendo propostas
não se destinam à solucionar os grandes problemas das rádios
comunitárias. A maioria dos problemas – ou todos? – têm como foco a
legislação em vigor e esta, em seu cerne, não é alterada. Boa parte
dessas sete mudanças somente atualizam o decreto em aspectos formais e
burocráticos, e assim reforçam o caráter discriminador da legislação.
Os pequenos avanços são suspeitos, uma vez que não resolvem, mas, pelo
contrário, criam uma situação conflituosa. É o caso da definição de
apoio legal, que continua contendo restrições.

Há “avanços” que deveriam ser apresentados com constrangimentos: é o
caso do fim do alcance de 1 quilômetro. Esse limite, imposto por um
decreto que se baseia numa lei tirana, é uma ilegalidade mantida há 14
anos; eliminá-la não vai resolver o problema porque ele antecede a
isto. De fato, vai continuar havendo guerras entre as RCs para operar
na mesma região com a mesma frequência. A existência de uma lei que
restringe a operação de RC a um canal (e fora do dial, se possível,
como quer a Anatel) contraria o que diz um dos 14 princípios
defendidos pela Amarc mundial:

“7. Reserva de espectro.

“Os planos de gestão do espectro devem incluir uma reserva equitativa
em todas as bandas de radiodifusão, em relação aos outros setores ou
modalidades de radiodifusão, para o acesso de meios comunitários e
outros não comerciais, como forma de garantir sua existência.”

Mudar um decreto depois de mudar uma norma, portanto, não é tanto uma
bizarrice como parece na primeira leitura. O ato decorre dessa postura
ideológica do governo que, quando se trata de rádio comunitária,
desconhece a ordem das coisas para tentar colocar a rádio dentro de
uma “disciplina” que ela cria e sustenta. E para isso segrega e
discrimina, impondo frequências fora do dial, criando guetos ou campos
de concentração.

Mudar a norma e o decreto, e nada mexer para mudar a lei ou anistiar
os que estão sendo punidos, é decisão política, ideológica. O governo
poderia fazer mudanças na legislação das rádios comunitárias, mas tem
escolhido sacramentar a que está em vigor. E para se legitimar junto
ao movimento abre “consultas públicas”, manda representantes para os
eventos, faz uso de um discurso democrático, apresenta-se como aliado
e aberto ao diálogo. Depois, “consultado o movimento”, soberanamente
distribui as migalhas, as sobras do banquete, e mantém tudo como está.

Se quisesse, de fato, alterar a legislação em vigor, o governo poderia
propor uma nova lei regulamentando as RCs, eliminando aqueles pontos
que são típicos de governos tiranos. Depois faria um decreto. E por
fim uma norma. Nessa ordem. Começar pelo fim, editando uma norma (e
muito pior que a anterior), já sinaliza para onde o governo quer que o
movimento das RCs siga: para lugar nenhum.

Não cabe citar aqui as mudanças na legislação para torná-la mais
justa. O governo já sabe. Ocorre que fazer isso – uma legislação não
tirana – seria contrariar os interesses das grandes redes, mudando uma
postura ideológica determinada ao Estado por essas mesmas redes. Os
tecnocratas de plantão não têm coragem de fazer diferente.

A possível edição de um novo decreto com essas mudanças propostas
somente alicerça o temor do que pode acontecer se o governo resolve
construir um novo marco regulatório para as rádios comunitárias. Se
continuar com esta postura ideológica – distribuindo migalhas para
manter a mesma linha de controle, vigilância e punição do setor – nada
de positivo irá acontecer. De fato, com este decreto e a norma o
governo Dilma Rousseff deu, pelo menos, dois sinais do que pretende
fazer.

Certa vez Mao Tse Tung deixou claro: numa guerra a primeira coisa a
saber é quem são os seus aliados e os seus inimigos. No caso das
rádios comunitárias, alguns inimigos são visíveis – a Abert, as
igrejas, os donos de grandes emissoras, certos parlamentares… – e
outros se passam por aliados. É o caso do governo e, mais
especificamente, do Ministério das Comunicações. No discurso, as
rádios são tratadas como aliadas, mas na prática o ministério sustenta
a legislação e a repressão, ratificando a burocracia, a fiscalização e
a punição, sem propor mudanças consistentes. Por que o governo tem
tanto medo das rádios comunitárias?

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