Democracia, segurança pública e a coragem para agir na política

A chamada Cracolândia (nome aparentemente cunhado pela grande mídia que, de certo modo significante, remete a um lugar de diversões, a estilo do nome do parque Disneylândia) e o bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, têm algo em comum além do fato de terem sido o palco das recentes violações de direitos sofridas por parte de uma parcela da população que parece não ter “direito a ter direitos” (nas palavras críticas de Hannah Arendt). Ambos os locais possuem em comum o fato de serem áreas de forte especulação imobiliária.

Os usuários de crack do centro de São Paulo encontram-se na região que o governo definiu para a execução do projeto “Nova Luz”, em referência ao discurso que assinala esta área como decadente, repleta de marginais, abandonada, suja… Neste projeto higienista, a Prefeitura pretende vender ao sistema privado o direito de desapropriar e estabelecer as prioridades da nova ocupação do bairro de acordo com interesses particulares, em detrimento do bem público. A área classificada pelos governos como abandonada sedia um dos maiores centros brasileiros de comércio de equipamentos eletrônicos e de informática. Quem já foi à Santa Efigênia, ou mesmo à rua 25 de março, constata, ao contrário, a decadência da presença do poder público, com ausência de serviços essenciais, inclusive os de saúde pública, como a limpeza das ruas. A ação repressiva da PM somente espalhou os chamados craqueiros para outros locais da região central, passando longe de ser solução, mas abrindo a possibilidade de formalizar o “progresso” imobiliário e comercial da região.

No bairro Pinheirinho, o conhecido especulador financeiro Naji Nahas detém, por meio de uma empresa falida, de sua propriedade, a área de moradia de quase 1.600 famílias. Pertencente a um casal de alemães mortos em 1969, não se sabe ao certo como o terreno, de posse do Estado por falta de herdeiros legais, acabou como propriedade de Nahas. Sabemos que o Estado, via decisão de uma juíza de São José dos Campos, confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou o despejo deste enorme contingente de pessoas, sem lhes garantir o direito à moradia, autorizando jogá-las na incerteza da ausência de um teto, inclusive com o uso de cassetetes, balas de borracha e gás de pimenta. Autorizado pelas leis, o governo optou pela violência em lugar de discutir uma alternativa de moradia ou mesmo de permanência no local.

Em várias ocasiões, na história da humanidade, pudemos ver a cena de pessoas amontoadas, crianças, idosos, doentes, sem seus pertences. Normalmente, fruto de algum tsunami ou catástrofe natural, ou mesmo de uma guerra. Em Pinheirinho, vimos a mesma cena, contudo, provocada pelo Judiciário e pelo governo do Estado, com o apoio do aparato repressivo da Polícia Militar. É chocante.

De fato, o poder público, aliado ao interesse privado da especulação, coloca-se favorável a uma ideia da expansão imobiliária como sinal de desenvolvimento. É histórico, em qualquer área urbana, que tais “reformas” levam a uma valorização financeira do metro quadrado, lançando a população pobre para além dos limites das atuais condições já precárias de moradia. Para que o projeto especulativo se concretize nestas áreas é necessário limpá-las da presença dos pobres. Leiam o comentário postado na página da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo:

“Após a limpeza, já era possível circular tanto a pé como de carro pelas alamedas Cleveland, Dino Bueno e Glete e a rua Helvétia, que ficam no entorno da praça Júlio Prestes. Locais que eram usados como esconderijos e moradia dos usuários de drogas foram desocupados e estabelecimentos comerciais funcionavam normalmente.” (03.01.2012)

Experimentamos, nestes casos, uma clara demonstração de um projeto autoritário para as relações entre o poder público (podemos ler, inclusive, o Estado de Direito) e a população. Apesar de a Constituição brasileira tratar o direito à moradia como absoluto e o direito à propriedade como relativo à sua função social, o Estado, por meio de seus diversos poderes, em caso de conflito, tem atuado em favor do “desenvolvimento”. Para tanto, tem feito uso sistemático, especialmente em São Paulo, de uma Polícia Militar cada vez mais violenta (nunca esta instituição matou tanto na última década quanto no ano de 2011!) e repressiva (espanca estudantes da USP dentro do campus). Sua organização e disciplina, subordinadas ao comando do Exército, são regidas pelas mesmas regras impostas pela Constituição outorgada pela ditadura em 1969. Com a mudança do regime de exceção para a democracia, não houve a revisão ou reforma das instituições ligadas à segurança nacional e pública, mantendo nestes setores uma ideologia agressiva com a população não proprietária e garantindo a impunidade para as violências praticadas por seus agentes.

Tal situação evidencia o modelo que os setores patrimonialistas e da elite brasileira, com a anuência da classe média e o silêncio amedrontado de uma parcela da esquerda que perdeu seus compromissos de classe, escolheram para uma democracia limitada, muitas vezes de fachada com um verniz reluzente, outras vezes com características autoritárias.

Vivemos um momento grave de nossa vida social em que precisamos refletir sobre qual democracia queremos e, mais do que isto, agir com radicalidade para denunciar um modo autoritário e manipulador de se fazer política. Conflitos como os vividos neste mês de janeiro em São Paulo demandam daqueles que se sentem ofendidos por tamanha violência uma atitude corajosa de ruptura com o modelo conciliatório da transição “lenta, gradual e segura”, sob o qual construímos o nosso Estado de Direito.

Romper com a ditadura

O rompimento com a ditadura militar no Brasil se efetuou por meio da transição de uma visão da política como enfrentamento e violência para um modelo do consenso, acordado em negociações entre os representantes políticos. O rito institucional do consenso, obtido nas negociações da Lei da Anistia (1979), do Colégio Eleitoral (1985) e da Constituição (1988), pretendeu forçar uma unanimidade de vozes e condutas em torno da racionalização da política, difundindo significações mais ou menos homogêneas sobre os anos de repressão. A oposição entre a razão política pacificadora e as memórias doloridas da repressão obstrui a expressão pública da dor e reduz a memória às emoções, acabando por construir um novo espaço social justamente sobre a negação do passado.

Era o marco da transição da ditadura para o Estado de Direito, visando superar – e mais do que isso, silenciar – o drama vivido diante da violência estatal.

Diante do Estado autoritário e da imposição do medo nos anos da ditadura, não bastava remover o chamado “entulho autoritário”, ou seja, era insuficiente modificar certas leis e estruturas de governo, reformar o sistema eleitoral e político, entre outras medidas institucionais. Eram ações limitadas para a criação de uma nova dimensão pública, o que excluía o movimento social de participação no “jogo”.

A análise da transição brasileira aponta a intenção de dividir a sociedade em parcelas previamente identificadas. O estabelecimento de grupos determinados como partícipes do novo regime ocorre mediante a exclusão de outros segmentos, silenciados em suas demandas. Entretanto, se considerarmos que na democracia o povo que a compõe não corresponde a parcelas socialmente determináveis, então, a democracia seria a prática política de sujeitos que não coincidem com qualquer parte do Estado ou da sociedade em particular, mas sujeitos que se transformam e se sobrepõem às parcelas representadas nas instituições.

No Brasil, o estado de exceção surgiu como estrutura política fundamental, prevalecendo como norma quando a ditadura transformou o topos indecidível da exceção – me refiro ao filósofo Giorgio Agamben, em sua obra Homo Sacer, e a indefinição do que está dentro e fora do ordenamento na exceção – em localização sombria e permanente nas salas de tortura. Também o crime de desaparecimento forçado é marcado pela ausência de um lugar definido, haja visto que a busca pela localização do corpo mobiliza os familiares das vítimas até hoje.

Figura jurídica anômala da constitucionalidade do Estado autoritário, seu produto mais discricionário no Brasil foi o Ato Institucional número 5 (AI-5). Este decreto ampliou os poderes de exceção do cargo de Presidente e extinguiu vários direitos civis e políticos (artigos 4º, 5º e 8º), especialmente o habeas corpus (artigo 10º). De fato, investiu o Estado da prerrogativa de manipulação dos corpos e, também, da vida matável dos cidadãos. O corpo passa a ser algo fundamental para a ação do regime. No caso do desaparecido político, sabe-se da existência de um corpo – desaparecido – e de uma localidade – desconhecida –, mas marcado pela ausência. Se a sala de tortura tem como resto de sua produção um corpo violado, o assassinato político produz o corpo sem vida. O grande aumento de desaparecidos políticos a partir do AI-5 demonstra como essa peça jurídica indicava a implantação do estado de exceção como normalidade.

Tendo sido o primeiro ato institucional sem data para acabar, o AI-5 foi extinto em dezembro de 1978, mas alguns de seus dispositivos foram, ao longo dos 10 anos de sua existência, inseridos na Constituição e na Lei de Segurança Nacional, ainda hoje vigente.

A violência originária de determinado contexto político, que no caso da nossa democracia seriam os traumas vividos na ditadura, mantém-se, seja nos atos de tortura ainda praticados nas delegacias, seja na suspensão dos atos de justiça contida no simbolismo da anistia, impunidade reafirmada pela decisão do STF em aceitar a inimputabilidade dos crimes de violação dos direitos fundamentais ocorridos na ditadura. Tais atos, por terem sido silenciados nos debates da transição, delimitam um lugar inaugural de determinada política e criam valores herdados na cultura, tanto objetivamente, quanto subjetivamente – nas narrativas, nos testemunhos, nos sentimentos e paixões dos sujeitos subtraídos da razão política. O medo do que não foi julgado, do que não se sabe a verdade, paira sobre a política brasileira como modo de coerção em favor de uma política do possível.

Nos aspectos sociais e nacionais, as marcas de esferas políticas originárias, como a sala de tortura e a transição consensual, se constituem como partes fundantes da democracia nascida após o fim da ditadura. O caráter maldito da tortura e o aspecto de impunidade da democracia incluem na atual memória coletiva brasileira o medo da violência e da fabricação do corpo nu dos torturados. A aceitação simbólica da anistia como uma lei de anulação das possibilidades de justiça, se configurou, seguindo à sala de tortura, como a exceção política originária na qual a vida exposta ao terrorismo de Estado vem a ser incluída no ordenamento social e político. A fidelidade ao princípio da não inscrição da matabilidade na norma mantém-se na lei ao anistiar os criminosos sem a apuração dos crimes e de seus agentes. A implicação da inclusão da vida na ordem, via sua exclusão, cria a indeterminação das distinções entre as esferas pública e privada.

A transição consensual criou uma falsa questão: punir ou perdoar?! Encontramo-nos diante do problema de como conviver com um passado doloroso em um presente democrático, administrando conflitos que não se encerraram com a mera passagem institucional de um governo de exceção para um democrático. Por que passadas décadas dos crimes há reclamação por justiça? Deve-se julgar e punir os responsáveis pelas violações aos direitos humanos? Ou eles podem ser perdoados em nome da reconciliação nacional?

Se alguns países latino-americanos se dedicaram à criação de novos investimentos em direitos humanos, o Brasil manteve-se como modelo de impunidade e não seguiu sequer a política da verdade histórica. Houve aqui uma grande ditadura, mas os arquivos públicos não foram abertos e as leis de reparação somente ouviram o reclamo das vítimas por meio de frios documentos; não deram direito à voz e não apuraram a verdade.

Enquanto os torturadores do passado não forem julgados e punidos, não teremos êxito nas políticas de diminuição da violência. Precisamos de uma Comissão da Verdade que apure as circunstâncias dos crimes, abra os arquivos da ditadura e proponha a punição dos responsáveis. Somente assim teremos como elaborar o passado e construir uma democracia respeitosa aos direitos do cidadão.

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