Na assim chamada Primavera Árabe, mais um ditador de longa história no poder, o governante da Líbia por 42 anos Muammar al Gaddafi, foi derrubado apesar das promessas de massacres dos inimigos e resistência infinita. No momento em que esse artigo era escrito, o líder líbio permanecia desaparecido, talvez deixando a barba crescer oculto em algum buraco em sua cidade natal, Sirte, da mesma forma que Saddam Hussein também tentou se esconder num pequeno abrigo subterrâneo em Tikrit.
Essa, no entanto, não é a única coincidência. O Iraque, junto com a Venezuela, foi dos criadores da Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP, entidade que tirou dos EUA e Inglaterra o controle absoluto sobre o preço do petróleo no mercado internacional. Já o país norte-africano foi o primeiro a conseguir das petroleiras estrangeiras mais de 50% das receitas sobre o óleo, exatamente com a ascensão do agora ex-líder em 1969.
Portanto, não é de se estranhar que esses líderes, ao contrário dos ditadores da Arábia Saudita, Iêmen e Bahrein que seguem tendo apoio irrestrito do Ocidente (assim como tiveram os governantes do Egito e da Tunísia antes de suas quedas), tenham caído com a “pequena ajuda” de massivos ataques de “amplas coalizões” de exércitos de algumas das maiores potências bélicas mundiais.
Nas imagens que simbolizam o momento exato da derrubada dos regimes e que ficarão no imaginário coletivo global, contudo, isso não fica assim tão claro. Tanto na Líbia como no Iraque, é a destruição física de monumentos/imagens representativos dos ditadores (a estátua de Saddam em Bagdá e a “mão de Gaddafi” esmagando um F16 dos EUA durante o bombardeio que teria matado uma de suas filhas em 1986) que caracterizaram esse instante histórico nas páginas dos principais jornais e revistas do mundo, assim como nos noticiários de tevê e internet. Em ambos os casos, as fotos mostram o que seriam cidadãos dos próprios países (“populares” no caso iraquiano e “rebeldes” no líbio) liderando as ações. Nas imagens, nenhum militar estrangeiro aparece tomando o quartel de Gaddafi e também são raros os enquadrados pelas câmeras na praça central de Bagdá.
No Iraque, a história da construção dessas imagens já está sendo contada. No filme A guerra que você não vê (The war you don’t see) lançado na Inglaterra em 2010 pelo jornalista e documentarista de origem australiana John Pilger, o repórter da BBC de Londres Reggy Yama, que cobriu os eventos no local, admite com todas as letras que a derrubada da estátua de Saddam “foi um momento criado para a televisão” e “o único acontecimento disponível para as câmeras da imprensa internacional reunida no topo do Hotel Palestine”. Pilger apresenta ainda um relatório interno do exército estadunidense descrevendo o que os militares chamam de “circo da mídia”, com “quase tantos repórteres quanto iraquianos” e que a decisão de derrubar o monumento foi tomada por um oficial dos EUA para “explorar” essa oportunidade imagética.
Ainda é muito cedo para termos certeza do que de fato está acontecendo na Líbia. No entanto, pelo menos uma das imagens divulgadas da tomada de Trípoli traz fortes indícios de que foi deliberadamente criada para as câmeras internacionais: a foto de um “cidadão” erguendo pelo teto solar de seu carro um estandarte líbio de antes de Gaddafi atado a bandeiras da França, Estados Unidos, Itália e Inglaterra.
Ela é simbólica ao mostrar a “coalizão” de países que “ajudaram” a derrubar o ditador. Mas dificilmente um líbio com o mínimo de conhecimento da história de seu próprio país (e o analfabetismo é zero na Líbia) teria o desplante de brandir o pendão italiano nas ruas da capital. Afinal, a violenta colonização, entre 1911 e 1942, por parte da pátria de Benito Mussolini teria deixado cerca de 600 mil mortos no país norte-africano. O próprio chefe de governo Silvio Berlusconi reconheceu esse fato em 2008 com um pedido formal de desculpas e a promessa de investimentos de US$ 5 bilhões em 25 anos em troca da “ajuda” de Gaddafi na repressão contra a “imigração ilegal” da África para a Europa.
A imagens são fundamentais porque, segundo a ensaísta estadunidense Susan Sontag em seu livro “Diante da dor dos outros”, “na era da guerra telemonitorada contra os inumeráveis inimigos do poder americano, as normas do que deve e do que não deve ser visto ainda estão sendo elaboradas. Os produtores de programas jornalísticos na tevê e os editores de fotografia das revistas e dos jornais tomam, todos os dias, decisões que consolidam o instável consenso acerca dos limites do conhecimento do público”.
Na mesma linha, o professor Boris Kossoy explica em “Os tempos da fotografia” que “Assim são construidas ‘realidades’, assim é moldada a memória, à medida que:
a) as imagens do mundo são produzidas e distribuídas cada vez mais por alguns poucos e poderosos impérios da informação;
b) fotografias destinadas a ilustrarem notícias são selecionadas em bancos de imagens;
c) inúmeras imagens que não foram utilizadas na ilustração de notícias (seja porque não agradavam esteticamente ou não se prestavam ideologicamente ou por alguma outra razão) são ‘deletadas’ nas próprias câmeras dos fotógrafos ou fora delas, interferindo não apenas na notícia ou matéria jornalística de hoje, mas também na construção da memória coletiva, que, por sua vez, estará sendo igualmente manipulada, moldada.”
Dificilmente o povo líbio terá no futuro um destino muito diferente do vivido pelo iraquiano desde de 2003. O mais provável é que o controle sobre os poços de petróleo seja disputado pelos mesmos interesses comerciais que controlam a construção do imaginário mundial sobre esses conflitos. E a única possibilidade de influir, por menos que seja, na criação dessa ‘realidade’ é com a difusão de informações e imagens contra-hegemônicas.