A história por trás do show midiático

Entender o atual processo político da Venezuela, ou ao menos observar os fatos com clareza, constitui desafio praticamente insuperável a quem quiser fazê-lo valendo-se do que veicula a mídia comercial, seja a do próprio país, as agências internacionais ou a chamada grande imprensa brasileira. Os menos treinados em desconfiar engolem a cantilena de que o presidente Hugo Chávez é uma ameaça à democracia e enfrenta forte oposição do seu próprio povo. Os menos ingênuos ficam com a incômoda impressão de que a história não é bem assim.

Afinal, o tenente-coronel já acumula um impressionante currículo de sobrevivência política – três paros, um deles com dois meses de duração, convocados com objetivo de tirá-lo do poder, e um golpe de Estado. Atualmente, está vencendo mais uma queda-de-braço com a oposição que tenta convocar um referendo e lhe encurtar o mandato previsto para terminar em 2006. Desde que tomou posse, Chávez enfrenta o descontentamento da elite local, orquestrado pela Fedecámaras (Federação de Câmaras e Associações de Comércio e Produção da Venezuela) e pela CTV (Central dos Trabalhadores da Venezuela) e transmitido pelas TVs, um braço fundamental da coalizão antichavista. E, claro, tudo isso com as bênçãos do Departamento de Estado dos Estados Unidos.

É de se perguntar: com tamanho poderio contra si, como resiste Chávez e quem o apóia? A resposta é dada pelo educador venezuelano Henry Nava, que participou das mobilizações populares pela volta do presidente em abril de 2002: “Somos a chusma, que causa repulsa nessa gente racista, defendendo Chávez, um tipo como nós. Os desempregados, os mendigos, o lumpesinato, todos os pobres deste país sabiam o que perderiam com o golpe”. A declaração, emocionante e esclarecedora, está no livro “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez”, do jornalista Gilberto Maringoni, lançado pela Fundação Perseu Abramo.

Enfim, os fatos

Resultado de quatro viagens feitas pelo autor ao país caribenho, dezenas de entrevistas e uma obcecada pesquisa sobre a história recente venezuelana, o trabalho é um bálsamo a quem se aflige com a desinformação. Declarado entusiasta da resistência ao neoliberalismo representada por Chávez, Maringoni dispensa a imparcialidade, mas se esmera na precisão e fidelidade aos fatos.

O livro tem início com uma instigante e comovente narrativa do 11 abril de 2002, quando se deu o golpe estado — mais virtual que real —, as horas de incerteza que se seguiram e o esforço para furar o bloqueio dos principais meios de comunicação que transmitiam o que lhes convinha, não necessariamente a realidade.

“A Venezuela que se inventa”, contudo, vai além e tem a virtude de lançar luz sobre o porquê da conturbada atualidade e desfaz inúmeros mitos criados acerca do país. Um deles, que tanto gostam de propagar os conservadores, seriam a prosperidade e a sólida tradição democrática mandadas às favas por Chávez. Após a ditadura de Pérez Jiménez, terminada em 1958 com a sua fuga para República Dominicana, o país foi comandado por uma coligação partidária liderada pela AD (Acción Democrática) por 40 anos, até a eleição de Chávez pelo MVR (Movimento V República), em 1998. “Este grande acordo representou a tradução político-institucional de uma economia baseada na exportação de petróleo. Além de abrigar os interesses das elites, visava amortecer os conflitos sociais (…). Clientelismo, fisiologismo e corrupção eram também as características de um tipo de dominação que reprimia duramente qualquer contestação mais consistente. (…) Enfim, foi criada na Venezuela a mais eficiente democracia de fachada do continente sul-americano”, ensina Maringoni. Aqui fica claro o papel da dependência crônica dos “petrodólares”, responsáveis pelos períodos de bonança, mas insuficientes para garantir a solidez da economia venezuelana, totalmente a mercê da variação do preço internacional do produto.

Outra ilusão desfeita logo de saída é o suposto processo revolucionário que estaria sendo protagonizado por Chávez, que chegou a ser comparado ao chileno Salvador Allende. Considerado uma “ameaça à propriedade privada” e aos interesses dos Estados Unidos, como até o candidato democrata John Kerry gosta de advertir, o presidente venezuelano tem sido para lá de comportado. Seu programa econômico refuta as tão temidas quebras de contrato e ou calote na dívida e mantém a receita básica: câmbio flutuante, medidas para aumentar a arrecadação fiscal e rechaço a controle de preços e taxas de lucros.

No entanto, e isso não lhe perdoam os brancos e ricos, manteve a agenda social que beneficia população pobre do país. A Lei da Terra, aprovada num pacote com outras 48, foi o estopim do locaute ao qual foi convocada a sociedade civil — na Venezuela identificada com os setores médios e altos — em dezembro de 2001.

Assim como não engolem a chamada Lei dos Hidrocarburantes, segundo a qual deve se obter “uma apropriada vinculação do petróleo com a economia nacional, toda ela em função do bem-estar do povo”.
Como nem só na Venezuela são os interesses dos poderosos que ditam as regras, esse tipo de resistência tem contaminado a imagem do governo Chávez mundo afora. Quem se dispuser a acompanhar o honesto e competente exercício de Maringoni na compreensão do que lá se passa tem ao menos duas garantias: boa leitura e a oportunidade de reflexão baseada em informação, não em preconceitos.

A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez 224 páginas, R$ 30,00, de Gilberto Maringoni, Editora Fundação Perseu Abramo (www.fpa.org.br)

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