Políticas LGBT: Vazia sopa de letrinhas

No último dia 16 de abril, realizaram-se as eleições dos e das representantes LGBT da sociedade civil junto ao Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual de São Paulo. Dando um enorme passo atrás, tal disputa foi convocada sob novas normas. Na anterior, o decreto do prefeito determinava que a eleição ficaria a cargo do Fórum Paulista LGBT, tendo direito a voto as e os ativistas que residissem na cidade.

Naquele momento, a representação – ainda que compartimentada pelos segmentos identitários – foi eleita com amplo apoio da militância presente, na qual onde todos votaram em todos. Isso implicou que travestis, lésbicas, transexuais, gays e bissexuais não fossem escolhidos meramente entre seus pares, mas pelo conjunto do movimento mobilizado.

Infelizmente, na edição de 2010, o que se viu foi um retrocesso para a ideia de que “gay vota em gay”, “lésbica vota em lésbica” e assim por diante, numa postura que reflete a fragmentação, a despolitização e o corporativismo. Algo como argumentos do tipo “só uma travesti sabe o que ela passa por ser assim”. Acima de tudo, demonstrou uma falta de visão global que fosse capaz de perceber que a situação enfrentada pelos LGBT na cidade de São Paulo.

Essa nova representação surge num momento de esvaziamento do Conselho, algo que começou um ano antes quando, em março de 2009, houve a disputa por sua presidência. Ali foram explicitadas diferenças de concepção do que é o movimento social e seu papel. Sintomaticamente, foi eleita uma pessoa umbilicalmente vinculada à atual gestão Gilberto Kassab (DEM-SP), pois é coordenadora de um equipamento da Secretaria Municipal de Assistência Social, escolhida a dedo pela CADS. Ficou claro que havia uma falta de norte político.

Ficou claro que havia uma falta de norte político. Ao invés de uma agenda política incisiva, as reuniões do Conselho passaram a ser burocráticas, a ponto de os próprios representantes das Secretarias Municipais não se sentirem nem um pouco constrangidos com a total ausência de ações em suas pastas. Muitas reuniões nem aconteceram por falta de quórum.

Desalento – Representantes do poder público pouco frequentavam o Conselho, o que levou a um clima de desalento entre os ativistas da sociedade civil. Não se articularam as questões temáticas gerais ligadas, por exemplo, ao atendimento nos serviços de saúde ou à hostilidade vivenciada nas escolas. Não se fez controle social, não se concebeu nem muito menos se monitoraram políticas públicas. Em suma, não houve liderança ou protagonismo: um esvaziamento completo.

Em consequência, não houve pressão para a construção de um plano de combate à homofobia e, tampouco, para reverter o absurdo congelamento das verbas da Cads e seu contingenciamento ao longo de todo o ano de 2009. Neste aspecto, se antes o movimento organizado reclamava que a Cads se parecia mais com uma agência de eventos, agora o quadro é pior porque até aquela visibilidade efêmera se diluiu.

Não há uma relação sólida firmada com as e os munícipes LGBT. A não ser o tratamento deles como “nicho privilegiado de consumo e turismo”. Por fim, no apagar das luzes do mandato anterior, em uma reunião convocada às pressas, quase sem quórum, mudou-se o mecanismo de eleição desconsiderando- se todo o acúmulo obtido com as Conferências LGBT de 2008 que primaram pela equidade de gênero, sem a compartimentaçã o das letrinhas. Esse acúmulo foi simplesmente jogado na lata de lixo. As maiores prejudicadas acabaram sendo as travestis, transexuais e transgêneros cuja representação ficou incompleta devido à falta de cinco votos mínimos. Foram abandonadas por quem dizia defendê-las com esse sistema de votação esdrúxulo.

O equívoco das letrinhas – Ninguém há de negar que a vivência de uma transexual é diversa daquela de uma pessoa bissexual. Contudo, ao privilegiar uma concepção que agrupa os indivíduos em função do mesmo tipo de desejo sexual (pelo mesmo sexo no caso de gays, lésbicas e bis) ou com base na construção corporal (travestis, transexuais e transgêneros) , perde-se de vista que acima de todas essas categorizações (historicamente impostas pela medicina e pela psiquiatria que nos enxergava como desvios ou aberrações sexuais, fato que muitas vezes esquecemos) deveria estar um projeto de sociedade pautado na diversidade, na pluralidade, na democracia, na justiça social, no reconhecimento, no respeito ao outro e a outra, diferente de mim no seu corpo, na cor da pele, dos olhos, na espessura do cabelo, na maneira de andar, gesticular e se vestir.

Com isso, o que o movimento perde é a possibilidade de fazer política no sentido mais amplo: deixando de lado questões menores para se dedicar a pensar e construir uma nova sociedade em que o racismo, o machismo e a homofobia cedam lugar para relações igualitárias, sem nenhum tipo de preconceito ou discriminação. Abre-se mão da ideia de um movimento pela autonomia e liberdade plenas de orientação sexual e identidade de gênero. Fica-se preso à representação pela soma das identidades, sempre fragmentadas, fragilizadas porque separadas e opostas, intermitentes e artificiais.

Representantes – Ao invés de se eleger representantes qualificados comprometidos com um novo mundo, atuantes, com posições políticas claras, com histórico de militância, a eleição se transforma em algo pessoal, onde se discute a representação a partir da orientação sexual ou a identidade de gênero de cada um. Seguramente não é casual que entre os candidatos e candidatas que se apresentaram a esse processo equivocado e corporativo, quase não houvesse ativistas orgânicos do movimento social. Esses se afastaram do Conselho – possivelmente por discordar dos métodos desta eleição.

Para acabar com a homofobia é necessário haver mudanças estruturais profundas. Por isso é preciso discutir programas globais, projetos de sociedade. Inclusive porque há desigualdade até entre nós, LGBTs. Não somos iguais em cada “letrinha”. Um gay que seja branco, de classe média, com diploma de faculdade, residindo na região central não vive as mesmas dificuldades que uma lésbica ou uma travesti negra, que mal concluiu o Ensino Fundamental (se tanto), que vive de bicos e mora na periferia.

Além disso, uma mirada pelos Conselhos LGBT mostra que estes têm priorizado a representação institucional, por meio de ONGs, como é o caso do Conselho Nacional, que está sendo formado neste molde, do Conselho Estadual do Rio de Janeiro e de Goiás. São constituídos com representações do movimento social organizado, e não como um agregado amorfo que não sabe muito bem o que quer…

A falência da fragmentação provocada pela “sopa de letrinhas” é total, pois inviabilizou até mesmo a eleição de representantes da população de travestis, transexuais e transgêneros, caindo no artificialismo e no sectarismo do “cada um cuida da sua letra”, não muito diferente da idéia egoísta do “cada um com seus problemas”. Além disso, como dissemos, afastou a militância organizada deste espaço político, antes de tudo. Por isso, é preocupante ler certas avaliações ufanistas. Como alguém, em sã consciência, pode avaliar como bem sucedido um processo que deixou vagas em aberto?

O movimento social como um todo saiu perdendo, e não apenas as pessoas trans. Por isso, o prognóstico é que será preciso muito debate e atenção da sociedade civil para que o Conselho de Atenção à Diversidade Sexual saia do atomismo e possa ser um verdadeiro palco de discussão política qualificada. Que os novos representantes eleitos possam rever essa forma de eleição e resgatar a importância do Conselho, esvaziado no último período a partir de uma escolha infeliz para a presidência.

Cadê a Cads? – Para concluir, é preciso dizer que é sintomático que este quadro tenha se formado neste momento. Havia uma expectativa de que a CADS, nesta Administração, daria alguns passos adiante, mas o que se observa é que – com o pretexto de restrições burocráticas – nada tem sido encaminhado concretamente em termos de política pública.

Abundam, no entanto, ações voltadas ao empresariado que lida com o chamado “pink money”. Há um vazio de iniciativas de interesse popular, os recursos são quase inexistentes, mesmo em se tratando de uma Prefeitura que tem a terceira maior arrecadação do país. Com isso, as propostas aprovadas na Conferência Municipal LGBT realizada em 2008 vão lamentavelmente caindo no esquecimento. Mas isso já é assunto para outro artigo…


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Lula Ramires e Julian Rodrigues são coordenadores do Corsa, ativistas do Fórum Paulista LGBT e ex-membros do Conselho de Atenção à Diversidade Sexual de São Paulo.

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