A crise e o mundo do trabalho

foto: professoraclara.com

Vivemos há séculos a dominação e hegemonia de um modo de produção particular, cuja base de sustentação de seu funcionamento é a propriedade privada e a exploração do trabalho.
Em tempos de desenvolvimento acelerado e de expansão da produção capitalista, o aprisionamento do trabalho pelo capital fica menos visível, dada a aparente situação de melhoria das condições de vida de parte da classe trabalhadora diretamente envolvida no processo cotidiano de reprodução da sobrevivência, a partir dos ganhos, curtos, mas reais, de salários formais ou informais.
Mas é com a crise que vem à tona a perversa situação de se lucrar ou se compensar a perda de lucratividade com uma maior e mais intensa exploração do trabalho.
– Parte expressiva dos que tinham seus trabalhos formais os perde.
– Outra parte, cada vez menor, que se mantém na formalidade é ainda mais precarizada e situada em uma constante situação de incerteza sobre seu amanhã.
– Os dois anteriores juntos, vêem como o capital faz para, a cada momento histórico, tanto aumentar o exercito dos que ficam na fila de espera para uma possível inclusão, quanto intensificar ainda mais a quantidade de sujeitos excluídos de fato. Sujeitos estes que ampliarão as trincheiras dos trabalhadores informais globais que atuam tanto na legitima legalidade, quanto na ilegalidade.
Segundo a OIT, estamos falando de 212 milhões de desempregados mundiais e de uma parte expressiva da população – 1,5 bilhões – que sobrevive em condições indignas de tentativa de reprodução de sua própria vida, enquanto partícipe de uma sociedade humana. Vale destacar o contingente de jovens desempregados que chegaram a 10,2 milhões.
Milton Santos em seu precioso livro Por uma outra globalização, reitera que vivemos um paradoxo entre a fábula e a perversidade. A fábula enquanto conto fictício nos remete a uma possibilidade de inclusão massiva, fora da realidade. Já a faceta real do global liderado pelo capital, a perversidade, nos remete a potência destrutiva do capital ao longo do seu desenvolvimento histórico.
Estamos diante do mito do discurso dos melhores mundos. Estamos diante do suposto desenvolvimento técnico informacional global em que o individuo atuante em territórios concretos, locais, começa a ser moralmente interpretado como cidadão global. Este que é visto fora de suas particularidades, numa padronização comum que reitera a tentativa onipotente de um afã de projeção sobre um pensar, ser, estar únicos no mundo globalizado.
Estamos vivendo um choque de realidade entre o discurso de participação cidadã global e a criminalização, matança, invisibilidade no local, dos sujeitos, atores concretos em seus territórios tanto de sobrevivência subordinada de seu trabalho (espaço de trabalho), quanto de reprodução da vida cotidiana (espaço da morada).
Nessa nova moral global, o trabalhador é propagandeado como um sujeito para além de sua pátria, mátria, e incluído como um número a mais no universo ou dos que têm ou dos que não têm espaço concreto de inclusão formal na atual realidade econômica. Estamos nos referindo à típica sociedade do discurso imoral: aquela que projeta o falso como verdade e esta como única e imbatível.
Mas a crise, de novo ela, nos vincula com o real para além da fábula. Institui a verdade por mais que se tente ocultá-la através dos inúmeros meios massivos de projeção da falsa verdade dominante.
No desmascaramento da falsidade o cidadão, sujeito ativo nos territórios em que se conecta cotidianamente com a produção da vida, por menos que ela lhe pertença, é um sujeito particular, com práticas, sensações e sentidos ou distantes ou próximos de uma realização para além daquilo que projetam para ele como destino sem volta.
A perversidade global se transforma então em potencialidade local, nacional e internacional, dadas as possibilidades atuais das técnicas que, se bem utilizadas pela classe que vive do trabalho, dão um salto qualitativo no quantitativo excludente do capital.
Para isto, é necessário refazer, ressignificar, reorganizar, revirar o tempo do destempo em tempo coletivo de e para uma produção comum.
Isto requer um redimensionamento de algumas variáveis chaves, nos territórios, de uma reviravolta no que está de pernas para o ar, colocando os pés na terra. Entre esta reviravolta citamos a necessária vinculação de alguns tempos de produção territoriais:
– O tempo da formação frente ao redemoinho de informações soltas e sem sentido, que retoma a necessidade de saber ler o que se vive a partir de uma qualificação para transformar a falsificação do consenso em dissenso produtivo para si enquanto classe.
– O tempo da integração, frente ao isolamento e fragmentação vividos pela instituição do destempo numa sociedade que requer se reencontrar na realização para si dos desejos de produzir algo para além do mercantil;
– O tempo do encontro em meio à sociedade do desencontro despótico do ser, dada a tentativa de hegemonização do ter;
– O tempo da reconstrução dos espaços em uma dimensão solidária e coletiva de se produzir hoje o novo que se quer para todos.
– O tempo de um Estado nacional que encare o global a partir de uma esfera de integração dos povos e não das empresas, do uso coletivo e não do desenfreado sentido mercantil dado aos seres humanos, à natureza e aos demais seres.
– O tempo da retomada de um popular de classe, não populista, nem massivo quantitativo e sim politicamente engajado nos projetos para si a partir do protagonismo coletivo do que se projeta para ser executado.
– O tempo da realização do trabalho, fora do aprisionamento despótico do poder burguês sobre a vida como propriedade privada. O trabalho restituído em seu significado histórico de produção de vida e não de morte em vida como ora o tomamos, dado o controle dos poderes nas mãos de quem tem outra intencionalidade sobre o popular e sobre os territórios.
Talvez haja, para além da aparente desvantagem de estarmos imersos em uma crise, a possibilidade real de reinstituirmos, no novo tempo histórico, outro projeto necessário local, nacional e internacional.
Um novo que ao ser histórico revalida uma das premissas centrais de revelação do fictício: o de começar, com os pés no chão, como diria Milton Santos, a rever “o sentido que tem as coisas, isto é, seu verdadeiro valor, é o fundamento da correta interpretação de tudo o que existe”.