A análise estratégica e o Jogo Real da Política – 2

ESTRATÉGIA & ANÁLISE- ISSN 00331983

A análise estratégica e o Jogo Real da Política – 2

21 de agosto de 2009, por Bruno Lima Rocha

Neste segundo artigo, abordo as razões conceituais pelas quais me vi obrigado a estudar um intelectual e operador da direita brasileira, como é o caso de Golbery do Couto e Silva e a dedicação ao tema do estudo estratégico como estruturante da análise política.

Conforme iniciei a argumentação no primeiro artigo, afirmo que cheguei neste objetivo e vontade através da prática da militância política motivada e fundamentada pelos estudos de rigor. No campo estritamente acadêmico, abordei – em etapas anteriores – a análise estratégica a partir do estudo de dois órgãos federais de segurança e inteligência. A mudança de foco dentro do eixo de análise, se dá porque entendi haver alcançado um limite do estudo estratégico do ente estatal, onde não há possibilidade do trabalho implicar nem em proposição, e tampouco em reflexão teórica aprofundada por dentro destas instituições. Por isso resolvi-me por mudar o tema do estudo e apontar um novo público alvo, visando outro foco para o trabalho de análise estratégica.

Assim, a aplicação dos estudos estratégicos aplicados na política como forma de embate e debate, aponta como “objeto” de estudo não ao partido de tipo liberal-burguês (mesmo em sua versão mais à esquerda), mas formas de organização política e de movimentos populares que colocam a pauta reivindicativa como embrião de outra forma de poder societário, distinto da atual. Desta forma, a pujante luta popular latino-americana a partir da resistência às contra-reformas (restauração neoconservadora) do neoliberalismo me serve tanto de estímulo como de pontos de estudo.

Uma leitura tanto dos clássicos do pensamento político do Ocidente assim como do Estado da Arte da bibliografia latino-americana, e também através da observação da trajetória individual de autores mostra que a mudança de público alvo, de objeto de estudo, de destino da pesquisa e da explicitação da posição de partida, são fenômenos recorrentes dentro do universo das ciências sociais em geral e da ciência política em particular. O que há de contra-hegemônico é o posicionamento e não a função. Porque a construção desta teoria prevê uma postura, um ponto de partida e de mirada do “cientista social”. Entendo que estas posições sempre existem, a diferença é que opto por explicitá-la. O faço não por preciosismo ou para marcar uma distinção para com o campo, mas por identificar esta necessidade de rigor para abordar o tema.

Quem analisa faz o que? Os ofícios do analista e suas versões.

Para operar na política, o formulador de análise e incidências deve reconhecer a amplitude do leque de variações possibilidade de cada conjuntura, de cada momento. E, também tem de reconhecer a estratégia tal como é natureza desta área de estudo. Ou seja, como a ciência do conflito; uma disputa de interesses irreconciliáveis; a interação competitiva por agentes contrários; com o fator risco permanente; sendo que qualquer análise realista deve tomar as condicionalidades como dadas de antemão.

Neste sentido, quando o cientista político (politólogo) ou profissional de áreas afins trabalha apenas dentro das condições hegemônicas, como num simulacro de desenvolvimento de um saber de tipo “único” ou para quem este prestar “consultoria”, será nesta situação onde o chamado analista simbólico (versão mais lavada do analista estratégico) pode ser considerado também como um prestador de serviços. Ou seja, um profissional especializado embora muito versátil, com alto grau de informação estratégica (dotado de fontes de inside information) e com capacidade de trabalho em equipe.

Este analista, o simbólico, difere um pouco dos analistas de informação das agências de inteligência e organizações militares. O analista simbólico teria um papel intermediário entre um analista de informações, um formador de recursos humanos (treinamento, formação e reconversão) e de um estrategista clássico. Estas três características citadas acima, portanto, avaliamos como sendo parte do perfil do trabalho do analista simbólico.

Com o perdão da ironia, mas o emprego de jargão publicitário aqui é irresistível. Assim, reconheço que no Brasil a função não é novidade e temos vários “cases” de sucesso. Consideramos importante explicitar a função do analista simbólico porque o entendemos como uma possibilidade – não excludente – da tipificação de um profissional altamente qualificado, e que pode vir a trabalhar para distintos mercados, tanto de lógica empresarial como de lógica política específica. Entendo que esta polifuncionalidade aproxima a figura do analista simbólico ao papel de um dos analistas por mim mais utilizado em distintas atividades profissionais e de ofício (tais como textos, artigos, dissertação de mestrado, cursos e livro publicado).

Traços gerais da estratégia de Golbery

Este outro analista utilizado ao longo dos estudos é o general riograndino (por ser natural da cidade do porto do Rio Grande) Golbery do Couto e Silva. Ele, consagrado estrategista das Forças Armadas (FFAA) brasileiras, é utilizado não porque concorde com o destino e atividade-fim de suas análises e incidências, mas por outra virtude. Entendo que este gaúcho, militar de carreira, aplicou e operacionalizou em um sistema lógico e materializável, conceitos a princípio estanques e abstratos.

Golbery do Couto e Silva é autor de dois livros clássicos da área. O primeiro é Planejamento Estratégico (a edição que uso é a da UnB, datada de 1981a) e o outro é Geopolítica do Brasil, com os anexos de análise de Conjuntura Política Nacional e o Poder Executivo (da José Olympio, também em 1981b). Nestes textos se comprova que o intelectual conservador arriscou publicar e difundir suas idéias-guia cerca de uma década antes da conspiração golpista de 1964, cujas articulações iniciam em 1961. Assim demonstra que tinha a capacidade de execução, além da predição, fator esse que considero essencial. Muito de seus conceitos já foram superados, mas ainda no panorama do pensamento estratégico continuam válidos e funcionando nas organizações que o executam. Vou além. Se e caso o general fosse mais lido ao invés de comentado, princípios básicos da política e da estratégia não seriam tão ignorados. Afirmo que a simples noção de Programa Máximo e Programa Mínimo, ou Objetivo Estratégico e Meta Tática para a Etapa estão quase perdidos no uso corrente.

Um exemplo do abandono conceitual da idéia de processo está na constatação de que o conceito de meta (target) hoje quase inexiste em seu sentido estratégico. Em Silva (1981a, p.266) encontramos uma citação de Golbery para um texto de Arthur Lewis (Princípios de Planejamento Econômico), diferenciando a meta da atividade planejadora e do balanço inicial da equação de possibilidades, recursos disponíveis, prazos planificáveis e a estimativa de interação dos agentes contrários. “A meta é, de fato, aquilo que nos propomos de realizar como resultado da ação que pensamos realmente empreender”. Mais à frente, a definição de “condicionalidades” se dá ao definir as estimativas. “É muito importante estimá-la (a meta) sem quaisquer ilusões quanto ao que é de fato possível fazer”. Dou este exemplo para demonstrar a possibilidade de que o corpo conceitual de uma estrutura de pensamento como a empregada neste artigo tem de expor um processo político além das noções generalizantes e não substantivas dos conceitos empregados.

O mesmo se dá na crítica de Silva (1981 a, p. 89) ao pensamento elaborado de forma “simplista” ou “reducionista”. Segundo Golbery, e tomando como aporte um conceito de Mannheim, “o pensamento planificado, que está na base de toda a doutrina, implica no abandono definitivo do conceito simplista da causalidade linear e no reconhecimento da interação concomitante como o complexo e indissolúvel que dá organicidade de fato às estruturas dinâmicas em perpétua evolução.” Entendo que a opção por negar qualquer matriz de pensamento de causalidade linear é essencial para a capacidade de predição. Em função do abandono das ambições estratégicas de agentes sociais e também pela redução analítica dentro dos parâmetros poliárquicos, vivemos na ciência política hegemônica hoje uma perda de capacidades e habilidades. Reduzimos o foco e encurtamos nossas capacidades de exercício do ofício.

Esta perda atinge a termos equivalentes a ser alfabetizado em análise. O que dirá de noções básicas complementares como: acumulação de forças; caracterização de etapa; mera descrição do cenário complexo; identificação de agentes centrais e secundários com seus respectivos interesses estratégicos e táticos; coerções aplicáveis; manobra de envergadura, dentre outras. Entendo que Golbery fez de sua erudição terreno fértil para a incidência sobre a sociedade. Reconheço que seus efeitos foram nefastos, e me posiciono como inimigo estratégico (portanto irreconciliável) de sua aplicação de modernização conservadora ao custo de mais de 40 mil torturados.

Mas, como este artigo não trata de um panfleto, entendo que há algo comum nos distintos estudos estratégicos, que é a base conceitual de emprego operacional. É com esta mirada que reconheço o seu mérito como analista estratégico e considero suas obras como fundamentais tanto para o pensamento político brasileiro (com ênfase no desenvolvimento da sociedade de controle a qual todos devemos combater) como para esta difusão científica. Estamos e estou em posições opostas de origem, assim como também estou perante boa parte dos advisors ou consultants (consultores) operando no Planalto Central. Mas, considero que ambos nos oferecem boas tipificações de analistas estratégicos compatíveis como aquilo que podem ser considerados analistas simbólicos.

Analisar para que?

Afirmada a diferença, esta difusão científica com base na ciência política também tem como objetivo apresentar parâmetros mínimos que possam iniciar um diálogo entre o conhecimento acadêmico e sua incidência na sociedade realmente existente, nutrida esta incidência de intencionalidade, propósito estratégico, frieza analítica e o rigor necessário para operar no Jogo Real da Política (incluindo normas legais e reais, formais e informais). Uma disciplina aberta pautada em estudos das relações, instituições e seus valores que processam e administram poder, como parte consistente das ciências humanas e sociais, incidente dentro de sua complexidade e dotada, por tanto, da contundência da análise estratégica.

Modestamente assomo o grão de areia na busca, na prática e na defesa de uma politologia de dimensão estratégica – tomando forma irreconciliável com as sociedades injustas onde vivemos – e que seja produzida e vinculada à América Latina e suas lutas populares e emancipadoras.

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