Crise é grave, mas abre nova agenda

Para o economista Sérgio Mendonça, não resta qualquer dúvida quanto à profundidade da crise gerada nos Estados Unidos e irradiada para o mundo, com impactos também no Brasil. O baque sofrido pela economia nacional no último trimestre de 2008, afirma ele, quando o PIB (Produto Interno Bruto) caiu 3,6% após expansão que atingiu o patamar próximo dos 6%, foi mais brusco que o provocado pelo confisco do Plano Collor. Diante disso, a perspectiva, se a situação não se agravar externamente, é de lenta recuperação a partir de 2010. No entanto, apesar das dificuldades inevitáveis, seria possível construir um plano de desenvolvimento que tenha musculatura própria, baseado no mercado interno e independente da farra financeira. Atualmente ocupando o cargo de supervisor técnico das Pesquisas de Emprego e Desemprego do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), Mendonça falou ao Engenheiro sobre as perspectivas para o futuro.

Que impactos a crise teve e ainda terá sobre o Brasil?

Considerando que vivemos num período de integração dos mercados e globalização financeira, não havia como essa crise não atingir o Brasil. Os canais de transmissão são vários e o primeiro é o crédito, que secou a partir da quebra do Lehmann Brothers. Estávamos crescendo e, de repente, houve uma inversão e caímos 3,6%, uma guinada que eu nunca vi, nem no Plano Collor foi tão abrupta. Outro canal de contágio foi a queda das exportações. O terceiro está nas grandes cadeias produtivas internas, como a automotiva, que, de certa forma, está se recuperando com as medidas do Governo, como a redução do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para os veículos. Houve ainda fortíssima retração do investimento diante da incerteza. Por tudo isso, um cenário razoável em 2009 é a gente não crescer. Um exemplo é a indústria automobilística que, levando-se em conta as quedas nas exportações, terá no mínimo uma perda de 5% em relação a 2008. No melhor dos mundos hoje, com a sazonalidade favorável do segundo semestre, o Brasil tem chance de começar a crescer um pouco no final de 2009 e início de 2010.

Com deve se dar essa retomada?

Teremos que fazer isso com as nossas forças e dependendo menos de recurso externo, do crédito fácil, do dinheiro que entra nas bolsas, porque há escassez de capital financeiro. Os bancos e os fundos são menores e o Estado americano, assim como alguns europeus, está endividado. A economia vai ter que usar suas próprias pernas e musculatura. Vamos ter que verificar de que recursos dispomos, tanto em termos de crédito dos bancos públicos brasileiros como da capacidade de acumular lucros e investir, e até do nosso mercado interno, que é o grande ativo no curto prazo. O investimento é 17% do PIB, enquanto o consumo é 60%. Portanto, para atravessar a crise, dependemos disso, que é salário e crédito. Daí a importância das negociações coletivas para preservar o poder aquisitivo. Certamente, não vamos sair de zero e voltar a 6%, mas a retomada pode ser feita em bases mais duradouras. Será também a oportunidade para desmontar a loucura que é a taxa de juros no Brasil.

Pode ser então uma boa oportunidade de estabelecer o tão falado crescimento sustentado?

Na década de 30, depois da crise de 1929, nós industrializamos o Brasil. Por que não podemos pensar que essa crise coloca a oportunidade de tentar galvanizar um projeto de desenvolvimento nacional? Com o mundo desenvolvido desintegrado, o Brasil pode ter uma liderança saudável na América do Sul, pode ajudar a integrá-la energeticamente e em termos de transportes. A crise rompeu com o paradigma neoliberal, tudo que diziam não funcionou e temos que pôr algo no lugar. Não sabemos o quê ainda, mas não será o status quo.

É possível construir esse consenso?

Vamos pegar o exemplo concreto da Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica), que demitiu 4.200 trabalhadores. É exatamente 20% dos 21 mil que tinha. Portanto, não fez uma análise aprofundada, estimou as perdas com a crise e cortou. Ao fazer isso, está querendo preservar a rentabilidade que vinha tendo, mas isso estava ligado a perseguir o ritmo das finanças. Se os bancos estavam ganhando 20% ao ano, o capital produtivo se via premido a buscar o mesmo, mas isso era insustentável. A Embraer poderia ter feito uma negociação olhando para um padrão de rentabilidade novo, que tem que ser mais baixo. Esse desmonte do sistema financeiro turbinado coloca uma oportunidade ao capital produtivo de se fortalecer, olhando para uma rentabilidade sustentável do ponto de vista social. Se isso ocorrer, temos chance de colocar de volta o emprego no centro da agenda.

A reunião do G 20, que discutiu a crise, apontou para uma nova ordem mundial como essa?

Acho que não, porque ainda domina a ideia de solução nacional, cada um querendo resolver o seu problema. É preciso que haja disposição para uma cooperação internacional nova, com uma agenda ambiental séria, um pacto pelo emprego. Mais regulação financeira certamente haverá, mas isso é uma agenda mínima, não de transformação. Isso vai depender de líderes mundiais, visões ousadas.

O Governo brasileiro está tomando as medidas corretas?

O Brasil está indo bem no que diz respeito ao enfrentamento da crise, mas não são medidas transformadoras. O ponto fora da curva são os juros, que continuam muito altos. Isso tem respaldo da camada de cima da sociedade, que é a minoria, mas que tem dinheiro e influência e que apoia o rentismo. No plano internacional, o Lula, e quem vier depois, só será de fato respeitado se o País tiver o que mostrar nesse sentido, o que implica reverter a concentração de renda e lançar mão de práticas agrícolas ambientalmente corretas, por exemplo. Não estão dadas as condições subjetivas ou objetivas para a mudança, mas o otimismo reside no fato de termos uma agenda em aberto, que vai depender da sociedade brasileira, dos partidos, do movimento sindical. Antes, era um massacre para o trabalho e para a sociedade.