Nas últimas décadas surgiram em todo o mundo, nos campos da economia, política e cultura, inúmeras redes e organizações na esfera da sociedade civil lutando pela promoção de liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, constituindo-se embrionariamente em um setor público não-estatal. Redes e organizações feministas, ecológicas, movimentos na área da educação, saúde, moradia e muitos outros na área da economia solidária e pela ética na política – para citar apenas alguns – vão se multiplicando, fazendo surgir uma nova esfera de contrato social. O avanço de uma nova consciência e de novas práticas sobre as relações de gênero, sobre o equilíbrio dos ecossistemas e sobre a economia solidária, por exemplo, não emerge nas esferas do mercado ou do Estado. O consenso sobre essas novas práticas tem sido construído no interior de redes em que pessoas e organizações de diversas partes do mundo colaboram ativamente entre si, propondo transformações do mercado e do Estado, das diversas relações sociais e culturais a partir de uma defesa intransigente da necessidade de garantir-se universalmente as condições requeridas para o ético exercício das liberdades públicas e privadas. No interior dessas redes deslanchou um movimento internacional de resistência à globalização capitalista, com diversas manifestações que ganharam as ruas.
É neste contexto, como desdobramento dos eventos de Seattle em 1999, nos Estados Unidos, e no ano seguinte em Davos na Suíça – quando um expressivo conjunto de organizações e movimentos manifestou-se contra a globalização que a Organização Mundial do Comércio tenta impor a todo o planeta – que nasceu o primeiro World Social Forum, transcorrido em Pádova, na Itália, em abril de 2.000, como um espaço de encontro de diversas redes no âmbito da solidariedade e da economia social e civil, com massiva participação de entidades italianas e de algumas redes que atuam internacionalmente. No centro deste evento, integrado a um salão da solidariedade e da economia social, estas organizações asseveravam coletivamente, em contraposição à globalização em curso, a necessidade de “maior democracia econômica e política”.
Na Plataforma daquele Fórum, argumentava-se que após as revoltas de Seattle e Davos, os setores da sociedade civil, que nelas se reconheceram, devem “…’unir as próprias forças’ contra o poder das grandes corporações e multinacionais que ‘querem controlar todo aspecto da existência humana: agricultura, saúde, educação, informação.” (Civitas:2000:6)
Assim, dos movimentos de agregação de redes diversas, inicialmente em ações de protesto, surgem portanto movimentos complexos integrando redes internacionais com um projeto de enfrentar as grandes corporações, exigindo uma democracia econômica e política, que em sua base defende as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. Para Emir Sader, a partir daquelas manifestações de protestos se pode afirmar que “um novo elo de solidariedade começa a surgir, permitindo vislumbrar o potencial de um novo projeto hegemônico.” (Sader:2001:22)
No ano seguinte, em 2001, no Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, com a efetiva participação de delegações de 122 países (com 1.502 delegados estrangeiros), foram realizadas 16 mesas redondas e cerca de quatrocentas oficinas, com um público aproximado de 20 mil pessoas, tratando de uma infinidade de temas e propostas que cerca de 900 redes presentes e demais organizações participantes vem defendendo nos diversos países, em suas mais variadas lutas, considerando a libertação dos seres humanos em suas diversas dimensões.
Para Oded Grajew, a história do Fórum Social Mundial permite “…ilustrar como uma idéia aparentemente utópica pode se tornar realidade quando juntamos e conectamos as inúmeras redes, movimentos, associações e governos que aspiram a um mundo melhor, dispostos a colocar seus recursos, poder e competência a serviço do bem comum.” (Grajew: 2001:6)
Cabe destacar, particularmente, que naquele espaço de solidariedade e de esperança, após vários seminários temáticos que tratavam de diferentes aspectos da economia solidária, foi lançada a Rede Global de Socioeconomia Solidária, como possibilidade de integração, transformação e avanço neste aspecto do conjunto das redes. A idéia básica que subjaz à estratégia da Rede Global é que a difusão do consumo e do trabalho solidários, em laços complexos de realimentação, possibilita que toda a produção realizada seja consumida pela gigantesca coletividade que participa de organizações solidárias (sindicais, eclesiais, populares, etc) em todo o mundo; que os excedentes gerados nessas redes sejam reinvestidos no interior delas mesmas, construindo-se novas empresas, remontando-se solidariamente as cadeias produtivas, aumentando sua autonomia frente aos mercados, ampliando, qualificando e diversificando a oferta de produtos e serviços no interior das redes, criando novos postos de trabalho com distribuição de renda e redução da jornada laboral, promovendo o desenvolvimento local ecológica e socialmente sustentável e o bem viver das coletividades, expandindo o campo de possibilidades de realização da liberdades públicas e privadas, avançando na construção de uma nova formação social que pode configurar-se como uma sociedade pós-capitalista.
A proposta de que sejam realizados Fóruns Sociais Mundiais em todos os anos e em diversos lugares do mundo nas mesma datas, institui novos espaços de diálogos que avançam na consolidação dos acordos sociais que apontam para uma globalização solidária. Para além dos Estados e dos Mercados, as redes atuando solidariamente em processos de colaboração se consolidam, ao mesmo tempo que avançam na afirmação de um novo projeto hegemônico democrático. Não se trata apenas de controlar os orçamentos governamentais e as políticas públicas com a participação autônoma da sociedade em governos populares, mas de controlar com igual autonomia popular todas as cadeias produtivas dos processos econômicos, integrando o local e o global sob uma lógica de desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável. Trata-se também de afirmar uma nova cultura de solidariedade que permeie as micropolíticas do cotidiano, reafirmando a dignidade de cada ser humano em sua singularidade e as garantias necessárias à realização de seu direito ao bem viver.
Assim, analisando-se a consistência dessas redes em seu processo de emergência e em seus potenciais de transformação estrutural das sociedades, é possível supor e propor a ocorrência da integração das redes solidárias (que já participam e que venham a participar dos Fóruns Sociais Mundiais) em amplas redes de colaboração que permitam integrar ações de empreendimentos e grupos de consumidores, de associações de moradores, organizações eclesiais, sindicatos, movimentos populares e culturais e de diversas outras organizações sociais como formas de difusão do consumo e do trabalho solidários, da preservação do equilíbrio ecológico e das lutas contra toda a forma de preconceito, discriminação e opressão, reafirmando o direito de todos à cidadania.
Com efeito, quando redes locais deste tipo são organizadas, elas operam no sentido de atender demandas imediatas da população por trabalho, melhoria no consumo, educação, reafirmação da dignidade humana das pessoas e do seu direito ao bem viver, ao mesmo tempo em que combatem as estruturas de exploração e dominação responsáveis pela pobreza e exclusão, e começam a implantar um novo modo de produzir, consumir e conviver em que a solidariedade está no cerne da vida. As Redes de Colaboração Solidária portanto: a) permitem aglutinar diversos atores sociais em um movimento orgânico com forte potencial transformador; b) atendem demandas imediatas desses atores por emprego de sua força de trabalho e por satisfação de suas demandas por consumo, pela afirmação de sua singularidade negra, feminina, etc; c) negam estruturas capitalistas de exploração do trabalho, de expropriação no consumo e de dominação política e cultural, e d) passam a implementar uma nova forma pós-capitalista de produzir e consumir, de organizar a vida coletiva afirmando o direito à diferença e à singularidade de cada pessoa, promovendo solidariamente as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas.
Neste contexto, a meu ver, a importância dos Fóruns Sociais Mundiais reside justamente na possibilidade de integração e realimentação das inúmeras redes que atuam na defesa das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, buscando assegurar a todas as pessoas as condições materiais, políticas, educativas e informativas requeridas ao seu bem viver. Na medida em que o poder dessas redes vai crescendo pela integração das diversidades, nas práticas e consensos que vão sendo construídos solidariamente, tende a ser cada vez maior o seu empoderamento e a sua participação na condução dos governos em diversos níveis, mediados por administrações e partidos políticos compromissados no avanço radical da democracia, isto é, no enraizamento da democracia junto aos setores da sociedade que a defendem como meio para a promoção das liberdades e do bem viver de todos.
Não apenas um outro mundo é possível! Esse outro mundo já está brotando em inúmeros lugares nas práticas mais diversas centradas na solidariedade, que visam promover as liberdades responsáveis, enfrentando as diversas formas de opressão, exclusão e injustiças. A meu ver, os Fóruns Sociais Mundiais, contribuindo para a integração dessas redes em práticas de colaboração solidária podem cumprir um papel importantíssimo na reflexão sobre o mundo que queremos e que estamos coletivamente construindo e na melhor maneira de expandi-lo e consolidá-lo.
Referências Bibliográficas
CIVITAS (org). World Social Forum – la globalizzazione orizzontale. Civitas-Onimondo, Padova, 2000
GRAJEW, Oded. “Da utopia à realidade: um outro mundo é possível”. In: Caros Amigos. Especial, N.8, março 2001. São Paulo, Editora Casa Amarela.
MANCE, Euclides André. A Revolução das Redes – A Colaboração Solidária como uma Alternativa Pós-Capitalista à Globalização Atual. Editora Vozes, Petrópolis, 2000
SADER, Emir. “De Seattle a Porto Alegre e depois” In: Caros Amigos. Especial, N.8, março 2001. São Paulo, Editora Casa Amarela.
SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. Ed. Loyola, São Paulo, 1993.
De Seattle aos Fóruns Sociais Mundiais
World Social Forum
Pádova, maio de 2001
www.milenio.com.br/mance/fsm1.htm