África, berço do samba – parte 2
A origem banta (bantu) do samba, como vimos já está devidamente comprovada. Da mesma forma, é também banta a origem dos vocábulos “umbanda”, “macumba” “mandinga” etc, pertencentes ao universo dos cultos bantos do Brasil. Antes, porém, de entrarmos no cerne do nosso objetivo, façamos o seguinte esclarecimento.
O registro mais antigo que se conhece de cultos bantos em nosso país é o da cabula, denunciado numa pastoral do bispo D. João Corrêa Nery no Espírito Santo, no fim do século retrasado. Congregando, entre 1888 e 1900, mais de 8 (oito) mil pessoas, a comunidade dos cabulistas, entretanto, e certamente também em função da repressão, não dispunha de templo organizado em espaço físico exclusivo. Suas reuniões de culto eram secretas, realizando-se ora em casa de um adepto ora no meio da mata, mas com práticas, vestimentas e paramentos – segundo o famoso relato do bispo Nery, divulgado por Nina Rodrigues – bastante semelhantes aos da umbanda.
Observe-se ainda que toda a literatura que se ocupou de comparar as concepções religiosas dos povos bantos de Angola e Congo com as dos iorubas apontou uma falta de substância daquelas em relação a estas outras. Mas o que é certo é que elas guardam entre si diferenças estruturais. Uma delas é a não existência de divindades intermediárias de forma humana, e sim gênios da natureza criados por Nzambi (este nome ocorre, com pequenas variantes, em quase todas as línguas bantas), mas sem relação alguma com formas corporais humanas; outra é a não existência de templos, como vimos; e ainda outra é a não fixação de datas certas para a celebração de cultos.
Até a virada dos séculos XIX e XX, parece que essas diferenças eram bem compreendidas, como ocorre, hoje, em Cuba. E as informações de que dispomos sobre a cabula nos parecem bastante esclarecedoras a esse respeito.
No entanto, com o estabelecimento das primeiras comunidades baianas no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, começa a se verificar, ao que parece, uma supremacia iorubana (nagô), como vemos, por exemplo, nos textos de João do Rio sobre as religiões africanas na antiga capital federal. Essa prevalência é que vai, talvez, determinar o surgimento dos candomblés chamados “de Angola” e “de Congo” e a iorubanização da linha ritual conhecida como “Omolocô”, os quais, ao que consta, já não exprimem o sentido original das concepções religiosas dos povos bantos, mas apenas adaptam os princípios jeje-nagôs a um sonhado universo angolo-conguês.
Feito o esclarecimento, vamos ver que a matriz principal da umbanda nos parece ser essa cabula capixaba, a qual deu origem ao omolocô, cuja expansão se verificou particularmente no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX.
Pouco antes dessa expansão, a partir da segunda metade do século XIX, o processo gradativo que vai levar à abolição da ordem escravista traz, para a terra carioca, milhares de negros livres em busca de trabalho, que vêm juntar-se aos africanos, crioulos e mestiços que já ganhavam à vida na antiga capital do Império, principalmente nas zonas central e portuária. Esses negros livres é que vão constituir a á citada “Pequena África” e os outros núcleos dinamiza dores do samba no Rio de Janeiro.
Examinemos, agora, um significativo texto do sambista Aniceto do Império. Nascido e falecido no Rio (1912-1993), Aniceto de Menezes e Silva Jr., um dos fundadores da escola de samba Império Serrano, destacou-se como exímio partideiro pela facilidade com que improvisava versos nas rodas de samba. Seu texto, letra de um samba ainda inédito, é o seguinte: “Assumano, Alabá, Abacá, Tio Sanin/ e Abedé me batizaram/ na lei de muçurumim…”. Vejamos quem são esses personagens a quem o partideiro se refere.
“Assumano”, algumas vezes erroneamente grafado como “Aço Humano”, foi o nome através do qual se fez conhecido Henrique Assumano Mina do Brasil, famoso Alufá radicado no Rio de Janeiro e pertencente à comunidade da Pequena África, na virada do século XIX para o XX. Residiu no nº 191 da Praça Onze e tinha como freqüentadores de sua casa, entre outros, o célebre sambista Sinhô e o jornalista Francisco Guimarães, o Vagalume, fundador da crônica de samba no Rio. O nome “Assumano” é o abrasileiramento do antropônimo Ansumane ou Ussumane (do árabe Othman ou Utmân), usual entre muçulmanos da antiga Guiné Portuguesa.
No mesmo contexto, João Alabá, falecido em 1926, foi um famoso Babalorixa, certamente baiano, radicado no Rio de Janeiro. Um dos mais prestigiados de seu tempo, sua casa era no número 174 da Rua Barão de São Félix, nas proximidades do terminal da Estrada de Ferro Central do Brasil. Seu nome marca sua origem nagô (alagba, chefe do culto de Egungun; pessoa venerável, de respeito; ou antropônimo dado ao segundo filho que nasce depois de gêmeos). Era pai de santo da legendária Tia Ciata, também mãe-pequena de sua comunidade religiosa.
Da mesma forma, Cipriano Abedé, falecido em 1933, foi um famoso Babalorixa do Rio de Janeiro, no princípio do século XX, com casa, primeiro na Rua do Propósito e depois na Rua João Caetano, próximo à Central do Brasil. O nome Abedé, redução de Alabedé, designa uma das manifestações ou qualidades do orixá Ogum.
Já “Abacá” é provavelmente corruptela de Abu Bacar, nome muçulmano, mas o personagem não foi por nós identificado. “Tio Sanim”, por sua vez, parece ser o mesmo Babá Sanin, morador na Rua dos Andradas, e mencionado no referido livro de João do Rio.
O universo dos sambistas pioneiros não se restringiu, porém, apenas à comunidade baiana e muitos menos ao povo de muçurumim (linha ritual de influência islâmica), já que, quando essa arte começa a se expressar nas escolas de samba, grande parte dos fundadores era oriunda do Vale do Paraíba e adjacências (zona de irradiação cultural bantu), como foi o caso do principal fundador da escola de samba Império Serrano, o legendário Mano Elói.
Mano Elói foi o nome pelo qual se fez conhecido Elói Antero Dias, sambista nascido em Engenheiro Passos, RJ, em 1888, e falecido na cidade do Rio, para onde viera com 15 anos de idade, em 1971. Em 1936 foi eleito “cidadão samba” em concurso promovido pela União Geral das Escolas de Samba do Brasil. E em 1947 ajuda a fundar a escola de samba Império Serrano, da qual foi presidente executivo e, depois, presidente de honra. Em 1930, Mano Elói tornou-se o pioneiro do registro em disco de cânticos rituais afro-brasileiros. Nesse ano, com o Conjunto Africano, gravou um ponto de Exu, dois de Ogum e um de Iansã. Seu companheiro nessa empreitada foi outro sambista pioneiro, o legendário “Amor”, sugestivo apelido de Getúlio Marinho da Silva, nascido em Salvador, em 1889 e falecido no Rio, onde viveu desde os 6 anos de idade, em 1964. Exímio bailarino foi mestre-sala de vários ranchos carnavalescos. De 1940 a 1946 foi o “cidadão-samba” do carnaval carioca. Compositor, foi co-autor da marcha junina “Pula a fogueira”, até hoje executada.
O pioneirismo dos sambistas Amor e Mano Elói deve-se ao fato de eles terem levado para o disco verdadeiros cânticos rituais, executados e interpretados como autênticos pontos de macumba, com atabaques etc. Mas, antes deles, outros artistas da música popular já tinham criado obras baseadas nessa tradição, como foi o caso de Chiquinha Gonzaga com “Candomblé” (batuque composto em parceria com Augusto de Castro e lançado em 1888, provavelmente em comemoração à Lei Áurea, já que Chiquinha era ativa abolicionista), de “Pemberê” (de Eduardo Souto e João da Praia, lançado em 1921) e de “Macumba jeje” (lançada por Sinhô em 1923).
Depois de Mano Elói e Amor, vamos ter, entre muitas outras, “Xô, curinga” (Pixinguinha, Donga e João da Baiana), lançada em 1932 com a rubrica “macumba”, “Yaô” (Pixinguinha e Gastão Viana, 1938), “Uma festa de Nana” (Pixinguinha, 1941); “Macumba de Iansã” e “Macumba de Oxossi” (de Donga e Zé Espinguela, sambista e pai-de-santo, gravadas em 1940) e “Benguelê” (Pixinguinha, 1946) etc.
Contemporâneo de Amor e Mano Elói, e um verdadeiro elo entre o mundo do samba e o dos cultos afro, foi o tata Tancredo Silva Pinto. Compositor de “Jogo proibido”, de 1936, tido por muitos como o primeiro samba de breque, e co-autor de “General da banda”, grande sucesso do carnaval de 1949, além de autor de vários livros sobre a doutrina umbandista, Tancredo foi um grande líder do samba e da umbanda. Tanto que em 1947 ajudava a fundar a Federação Brasileira das Escolas de Samba e, logo depois, criava a Confederação Umbandista do Brasil.
Sobre a criação da Federação, Tata Tancredo (como era conhecido) contava um fato interessante, narrado no livro Culto Omolocô:… esse episódio passou-se na casa da minha tia Olga da Mata. Lá arriou Xangô, no terreiro São Manuel da Luz, na Avenida Nilo Peçanha, 2.153, em Duque de Caxias. Xangô falou: – Você deve fundar uma sociedade para proteger os umbandistas, a exemplo da que você fundou para os sambistas, pois eu irei auxiliá-lo nesta tarefa.
Imediatamente ele tomou a iniciativa de fazer a Confederação Umbandista do Brasil, sem dinheiro e sem coisa alguma. Teve uma inspiração e compôs o samba General da banda, gravado por Blecaute, que lhe deu algum dinheiro para dar os primeiros passos em favor da Confederação Umbandista do Brasil.
Quase vinte anos depois desse sucesso de Tancredo e do cantor Blecaute, em 1965, surge para o disco Clementina de Jesus, cantora nascida em Valença, RJ, em 1901, e falecida no Rio, onde vivia desde menina, em 1987. Descoberta para a vida artística já sexagenária, afirmou-se como uma espécie de “elo perdido” entre a ancestralidade musical africana e o samba urbano. Seu trabalho de maior expressão fez-se através da interpretação de jongos, lundus, sambas da tradição rural e cânticos rituais recriados, como o já mencionado “Benguelê”, de Pixinguinha.
Logo depois do surgimento de Clementina, outra importante interseção entre a música popular brasileira e a religiosidade africana ocorre com os “afro-sambas” (“Canto de Ossanha”, “Ponto do Caboclo Pedra Preta” etc) lançados por Balden Powell e Vinícius de Moraes em 1966. E é o mesmo Vinícius; em parceria com Toquinho, lançou um “Canto de Oxum”, em 1971, e um “Canto de Oxalufã”, em 1972.
Daí em diante, a vertente começou a se rarefazer, com raras incursões, como a do cantor e compositor Martinho da Vila, que, em um de seus discos do final dos anos 70, registrou uma seqüência de cantigas rituais da umbanda.
Com relação às escolas de samba cariocas – cujos terreiros (terreiros e não “quadras”, como hoje) até os anos de 1970 obedeciam a um regimento tácito semelhante ao dos barracões de candomblé, com acesso à roda permitido somente às mulheres, por exemplo -, veja-se que elas, hoje, são, ainda, um veículo em que a temática africana é recorrente. Muito embora seus enredos e sambas enfoquem a África por uma perspectiva meramente folclorizante o que não deveria ser; e sim cultural.
O samba-enredo – é uma modalidade de samba que consiste em letra e melodia criadas a partir do resumo do tema elaborado como enredo de uma escola de samba. Os primeiros sambas-enredo eram de livre criação: falavam da natureza, do próprio samba, da realidade dos sambistas. Com a oficialização dos concursos, na década de 1930, veio a exaltação dirigida de personagens e fatos históricos. Os enredos passaram a contar a história do ponto de vista da classe dominante, abordando os acontecimentos de forma nostálgica e ufanística.
A reversão desse quadro só começou a vir em 1959, quando a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro apresentou, com uma homenagem ao pintor francês Debret, e com grande efeito visual, o cotidiano dos negros no Brasil à época da colônia e do Império, o que motivou uma seqüência de enredos sobre Palmares, Chica da Silva, Aleijadinho e Chico Rei, voltados para o continente africano. Mas, se a ingerência governamental já não era tão forte, pelo menos enquanto cerceamento da liberdade na criação dos temas, um outro tipo de interferência começava a nascer: a dos cenógrafos de formação erudita ou treinados no show-business, criadores desses enredos, os quais imprimiram ao carnaval das escolas a feição que ele hoje ostenta e que, direta ou indiretamente, selaram o destino dos sambas-enredo. Tanto que, no final do século XIX, o samba-enredo era um gênero em franca decadência. Em cerca de 60 anos de existência, no entanto, a modalidade mostrou sua força em dezenas de obras antológicas.
Entre os enredos apresentados pelas escolas de samba cariocas das várias divisões, a partir de 1948, muitos fazem referência mais direta à África, como, por exemplo: “Navio negreiro” (Vila Isabel, 1948, e Salgueiro, 1957), “Quilombo dos Palmares” (Salgueiro, 1960, Viradouro, 1970, e Unidos de Padre Miguel, 1984), “Chico Rei” (União de Vaz Lobo, 1960, Salgueiro, 1964, e Viradouro, 1967), “Ganga Zumba” (Unidos da Tijuca, 1972), “Valongo” (Salgueiro, 1976, e Unidos de Padre Miguel, 1988), “Galanga, o Chico Rei” (Unidos de Nilópolis, 1982), “Ganga Zumba, raiz da liberdade” (Engenho da Rainha, 1986). Isso sem falar em outros tantos temas como “Porque Oxalá usa ekodidé”, “Oju Obá”, “Logun, príncipe de Efan”, “O mito sagrado de Ifé”, “Oxumare, a lenda do arco-íris”, “Alafin Oyó”, “Príncipe Obá, rei dos descamisados”, “Ngola Djanga”, “De Daomé a São Luiz, a pureza mina-jeje”, “Império negro, um sonho de liberdade, “Kizomba, festa da raça”, “Preito de vassalagem a Olorum” etc.”
Em seqüência ate a presente data surgiram vários samba-enredos; sobre a predominância, de temas ligados ao universo da língua bantu (Angola e Congo); e iorubano, observe-se que isso ocorre pela maior visibilidade que essas matrizes tem no Brasil, notadamente através da Bahia. A Bahia, graças principalmente à sua capital, é internacionalmente conhecida pela riqueza de suas tradições africanas, apropriadas como verdadeiros símbolos nacionais brasileiros. Segundo algumas interpretações, a visibilização desse precioso acervo cultural teria ocorrido pela presença histórica, em Salvador e no Recôncavo Baiano, de diversas “nações” africanas organizadas, e muitas vezes adversárias, cada uma ciosa de sua identidade étnica. E isto teria feito com que, lá, no combate ao racismo, os afro-descendentes se destacassem mais fortemente através da afirmação de suas expressões culturais específicas do que através da luta política, como em São Paulo, por exemplo. Entretanto, veja-se que personagens como Chico Rei, Ganga Zumba, Zumbi e Rainha Jinga, pertencentes ao universo banto, são também bastante freqüentes nos enredos que relacionamos.
A presença africana na música brasileira, pelo menos em referências expressas, vai se tornando cada vez mais rarefeita. Aparece, via Jamaica, no carnaval dos blocos afro baianos e nos sambas-enredo das escolas cariocas e paulistanas – especialmente nas homenagens a divindades. Mas nada de modo tão intenso como ocorre na música que se faz em Cuba e em outros países do Caribe.
Mesmo com a explosão comercial da chamada salsa, a partir de Porto Rico e via Miami, na música afro-caribenha de hoje é raro um disco que não contenha pelo menos uma cantiga inspirada em temas da religiosidade africana e interpretada com fervor apaixonado. Tito Puente, Mongo Santamaría, Célia Cruz, Rubén Bladez e muitos outros são exemplos fortes, o mesmo não acontecendo no Brasil, pelo menos na música mais largamente consumida.
No Brasil, o samba, a partir da década de 1990, apesar da voga inicial de grupos cujos nomes, mas só os nomes, evocavam a ancestralidade africana (Raça Negra, Negritude Júnior, Suingue da Cor, Os Morenos etc.), entendemos que foi se transformando em um produto cada vez mais fútil e imediatista para se preocupar com etnicidade. E isto talvez por conta do conjunto de estratégias de desqualificação que ainda hoje sustentam as bases do racismo antinegro no Brasil. É esse racismo que, no nosso entender, vai cada vez mais separando coisas indissociáveis, como o samba e a macumba, a ginga e a mandinga, a música religiosa e a música profana, desafricanizando, enfim, a música popular brasileira. Ou “africanizando-a” só na aparência, ao sabor de modas globalizantes made in Jamaica ou Bronx.
Desafricanização, como sabemos, é o processo por meio do qual se tira ou procura tirar de um tema ou de um indivíduo os conteúdos que o identificam como de origem africana. À época do escravismo, a principal estratégia dos dominadores nas Américas era fazer com que os cativos esquecessem o mais rapidamente sua condição de africanos e assumissem a de “negros”, marca de subalternidade. Isto para prevenir o banzo e o desejo de rebelião ou fuga, reações freqüentes, posto que antagônicas.
O processo de desafricanização começava ainda no continente de origem, com conversões forçadas ao cristianismo, antes do embarque. Depois, vinha à adoção compulsória do nome cristão, seguido do sobrenome do dono o que representava, para o africano, verdadeira e trágica amputação. Então, vinham às distinções clássicas entre “da costa” e “crioulo”, entre “boçal” e “ladino”.
Acreditamos que a música popular brasileira, de raízes tão acentuadamente africanas, seja vítima de um processo de desafricanização ainda em curso. Senão, vejamos. Quando a bossa-nova resolveu simplificar a complexa polirritmia do samba e restringir sua percussão ao estritamente necessário, não estaria embutido nesse gesto, tido apenas como estético, uma intenção desafricanizadora? E quando a indústria fonográfica procura modernizar os ritmos afro-nordestinos (de maracatu para mangue-beat, por exemplo), não estará querendo fazer deles menos “boçais” e mais “ladinos”, pela absorção de conteúdos do pop internacional?
Pois esse pop milionário, sem pátria e sem identidade palpável (mesmo quando pretende ser “étnico”), é exatamente aquela parte da música dos negros americanos que a indústria do entretenimento desafricanizou.
África, berço do samba (II)
Este artigo é do Nei Lopes, não?