Jornalismo em situações de conflito armado

Arte: Wolf Vostell, Miss América, 1968

Repórteres do Futuro – os direitos humanitários em conflitos armados

Entre a adoção de normas que garantem direitos internacionais humanitários e a aplicação delas há uma distância enorme, afirmou João Paulo Charleaux, responsável pela comunicação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) para países da América do Sul.

Durante o mês de outubro especialistas sobre direitos humanos jornalismo em áreas de conflitos vão debater com alunos de graduação de Jornalismo sobre o ‘Jornalismo em situações de conflito armado’. “Não basta ratificar as normas internacionais, é preciso que os Estados incorporem em seus países tais legislações” foi o que revelou o representante do CICV no primeiro dia do projeto ‘Repórter do Futuro’* em São Paulo.

O Comitê

Presente em 80 nações com cerca de 12 mil funcionários, o CICV é uma instituição independente de referência para promover e proteger os direitos internacionais humanitários (DIH). O chamado DIH é o direito aplicado em situações de conflito armado, e a Cruz Vermelha tem grande parte de sua atividade voltada para o apoio jurídico e a área médica.

João Paulo Charleaux explica que o Comitê Internacional concentra esforços para realizar atividades de diplomacia humanitária, “um lobby humanitário” para que os Estados ratifiquem o Estatuto de Roma criado em 1998 que prevê crimes de guerras. Os Estados aderem voluntariamente aos tratados. Vale fazer um pequeno retrocesso histórico para a criação do CICV. O Comitê surgiu no final do século XIX com a assinatura do primeiro tratado internacional que protegia combatentes e feridos, e ainda fomentava grupos de socorro em diferentes países. Essa foi a 1a Convenção de Genebra.

Ao longo das décadas e da intensificação de conflitos armados, novas necessidades surgiram, e assim, mais duas Convenções de Genebra foram assinadas: a que protegia feridos e náufragos em combates no mar; e a que oferecia proteção a prisioneiros de guerra, respectivamente. A 4a Convenção surgiu quando os conflitos migraram para mais próximos dos civis, e assim esse tratado previu a proteção à população civil. Sem contar com futuros tratados e protocolos que sucederam às quatro Convenções. Hoje no mundo são 195 países que aderem à 1a Convenção de Genebra.

O Diálogo

Ao não utilizar escolta privada, carros blindados ou porte de armas em suas ações, os integrantes do CICV utilizam como principal ferramenta o diálogo. “Nós tomamos o direito de iniciativa e aceitação”.

Charleaux ressalta que a interlocução com os atores dos conflitos se dá por meio da persuasão. “Há casos em que pode haver uma recusa à presença da Cruz vermelha”, alegou João Paulo. Exemplos recentes que o Comitê Internacional teve dificuldades em intervir foram na Somália, no Iraque e até mesmo em Mianmar (a ex-Birmânia).

Para facilitar a entrada do CICV nos locais atingidos, o Comitê busca aliar-se a colaboradores locais que já estão inseridos e conhecem os problemas enfrentados. “Porém, quando há muita rejeição, as atividades são reduzidas como no Iraque, ou até mesmo interrompidas, é o caso da Somália”, destacou.

Entre as diversas formas de atuação da organização como: distribuição de suprimentos; visitas a pessoas detidas ou privadas de liberdade; ajuda a restabelecer contato entre familiares separados pelos conflitos; ou até mesmo fazer obras de engenharia, saneamento básico e construção de hospitais, o critério de distribuição humanitária varia e obedece “a quem mais precisa”.

Países africanos chegam a receber até 40% dos recursos disponíveis. O financiamento da instituição provém de doações ou repasses dos Estados que ratificaram os acordos internacionais. Em 2007, o orçamento foi de 243 milhões de francos suíços, o equivalente a quase a mesma quantia em dólares (U$206 milhões).

Charleaux enfatiza a importância de equilibrar as responsabilidades da organização e do Estado. “Há o perigo de criar dependência, da viciar e substituir as responsabilidades que caberiam ao Estado”. Sua preocupação é prover para gerar autonomia e não dependência.

O sigilo

O representante do Comitê comenta que o CICV atua com discrição. Apesar de transmitir informações sobre crises humanitárias no mundo, sobre atividades desenvolvidas em cada região ou até mesmo lidar com a imprensa de forma a capacitar jornalistas acerca dos temas humanitários, o Comitê adota a política da confidencialidade.

“Não fazemos denúncias públicas, manter a confidencialidade é a forma mais eficaz que o CICV encontrou para a defesa dos direitos humanos”. E esclarece que apenas em poucos casos são feitas denúncias – “quando os direitos são repetidamente violados, não é ilegal haver uma prisão militar, o que a gente tenta impedir é a violação dos direitos”.

Manter o sigilo é o que garantiu o CICV a ser o único a visitar com freqüência presos políticos em Guantánamo. A visita a pessoas detidas em prisões de guerra é um dos mais importantes trabalhos da Cruz Vermelha em todo o mundo.
Além de prevenir maus tratos e tentar melhorar as condições de detenção, são feitas entrevistas particulares com os detidos e muitas vezes são restabelecidos laços de comunicação com familiares. Só em 2006, foram mais de 450 mil pessoas visitadas em 71 países diferentes.

E quando não há possibilidade de comunicação com familiares, o CICV tenta restabelecer laços e trocar mensagens. “Às vezes, os formulários são a única forma de comunicação com o mundo exterior”. No ano passado, cerca de 630 milhões de mensagens foram trocadas tendo o apoio a Cruz Vermelha.

No Brasil

O Comitê Internacional em conjunto com a Cruz Vermelha Brasileira promovem atividades pontuais de assistência. Desde 1998 tem sido implantado um programa para integrar e aplicar normas de direitos humanos à ação da polícia. O programa forma instrutores policiais em direitos humanos e princípios humanitários. Para Charleaux, a idéia é incorporar ao treinamento dos policiais uma visão mais humanitária.

O projeto não é exclusivo do Brasil, já está presente em 70 países e firma convênios com Secretarias de Segurança Pública em cada país. E apesar de não haver um acompanhamento periódico da ação policial, o programa já apresenta mudança no comportamento dos policiais. “O importante é a mudança cultural e a busca por alternativas ao uso da força, o resultado é a longo prazo”. Aqui no Brasil, mais de mil policiais já receberam a formação de instrutores em direitos humanos.

E quanto ao lobby diplomático, Charleaux ainda se refere ao Brasil quando diz que o Comitê Internacional não tem encontrado dificuldades ao lidar com o governo brasileiro em aderir à legislação internacional. “A maior dificuldade é adaptar à legislação doméstica do Brasil”.

O módulo sobre conflitos armados do projeto ‘Repórter do Futuro’ que acontece aos sábados na OBORÉ, em São Paulo, tem uma programação que promete acalentar as discussões entre os estudantes de jornalismo.

O convidado do próximo encontro é o jornalista e ex-correspondente da RTP em Bagdá, Carlos Fino. Já confirmaram presença o consultor jurídico do CICV, Gabriel Valladares e o representante do Centro de Comunicação Social do Exército, coronel Cunha Mattos.

*O curso é organizado pelo CICV junto com a OBORÉ (Projetos especiais em comunicação e artes) e a ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e teve início neste último sábado dia 6 d eoutubro.


Fabíola Ortiz

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